sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Mística e Gnose

O texto que postarei agora é uma tradução minha do texto Mística e Gnose, capítulo do livro de Marie-Madeleine Davy Nicolas Berdiaev ou la révolution de l'Esprit, Paris, Albin Michel, 1999. O capítulo está entre as páginas 123 a 140.
O texto é interessante para introduzir os leitores na obra de Berdiaev, além, é claro, de discutir justamente as categorias da mística e da gnose, para além do sentido pejorativo que o termo mística assume no Ocidente e para além do dualismo gnóstico e maniqueísta, estranho à obra de Berdiaev. Existe um espiritualismo universal? Existe um anseio do espírito que se manifesta em qualquer lugar do mundo? Não sabemos. A tradução que disporei agora, espero, possa nos ajudar a compreender ou a problematizar isso melhor.

Mística e Gnose 

"A mística é uma vitória sobre o estado de criatura" (Berdiaev, Esprit et Réalité).
"Eu acredito na presença de uma mística universal, um espiritualismo universal" (Berdiaev, Autobiografia).

O teandrismo exclui toda separação entre o visível e o invisível. A distinção se mantém isenta de confusão, mas a união entre o divino e o humano é indefectível. Nicolas Berdiaev sublinhou o caráter profundamente místico do pensamento ortodoxo aberto à gnose.

O termo "mística" pode nos deter. Ele sempre comporta, no Ocidente, um sentido pejorativo. No pensamento ortodoxo a vida mística é despojada de todo conteúdo emocional. Não existe qualquer dramatização da humanidade sofredora do Cristo, qualquer devoção sensível, qualquer imaginário sentimental. A vida mística se apresenta como uma orientação para o mistério: este de Deus e do homem em que o espírito tornou-se vivo.

A mística é uma via espiritual dirigida para a contemplação. Ela é tanto doutrina quanto experiência. Especulativa, ele comporta uma consciência "inspirada e intuitiva".

Na frente da mística autêntica, abundam falsas místicas. No Ocidente o termo "mística" é por vezes utilizado em um sentido errôneo. Fala-se assim de mística comunista, da mística comunitária, etc. É um emprego falacioso posto que a mística exige uma experiência espiritual pessoal para além da coletividade. É assim que a mística se diferencia da religião socializada e por consequência objetivada.

A mística considerada por Nicolas Berdiaev se situa no interior do cristianismo, e ela se insere no interior mesmo do drama cristão.

Este drama do cristianismo provém de um conflito entre a vida espiritual que não é "deste mundo" (pois o espírito é precisamente "o que não é deste mundo"), e a necessidade para o espírito de descer ao mundo natural sem se instalar lá.
"O espírito é o inverso do mundo, ele se destaca, desce e se simboliza em si" (Esprit et Liberté, Paris, Je sers, 1933, pag. 55)
A antinomia trágica vivida pelo cristianismo diz respeito a todo homem onde nasceu o espírito. Ele está no mundo sem ser escravo do mundo, compartilha o destino dos homens, vivendo no mundo sem estar a ele preso. É pelo segundo nascimento, quer dizer pelo nascimento espiritual, que o homem toma consciência da tragédia em que ele é obrigado a viver.

Nicolas Berdiaev evoca os mistérios da vida de Cristo que devem se realizar no segredo profundo do ser:
"O Cristo deve se revelar na vida interior do espírito, antes de se revelar no mundo exterior, natural e histórico. Sem a aceitação interior e espiritual de Cristo, as verdades descritas no Evangelho permanecem fatos ininteligíveis do mundo empírico exterior" (Id., pag. 57).
O pensamento cristão de Nicolas Berdiaev reconhece, por sua vez, a "carne" do cristianismo e seu espírito; não se trata então de um cristianismo abstrato, mas de um cristianismo vivo, cuja carne está informada pelo espírito. A mística pertence à realidade do cristianismo, à sua vida profunda, inegável em sua essência. O mistério da revelação cristã está além do sectarismo, do racionalismo e até mesmo da metafísica:
"Os místicos (...) exprimem o mistério da vida teândrica (...). A experiência dos santos nos dá um conhecimento mais profundo da personalidade humana, que toda metafísica e teologia reunidas" (Id., pag. 61)

Mais ainda, apenas a vida espiritual confere imortalidade:
"O homem natural, a mônada psico-corporal não goza de imortalidade, como uma qualidade que lhe é inerente. Apenas a vida espiritual merece a imortalidade, apenas o espírito possui a qualidade da vida eterna" (Id., p. 63).
Assim a imortalidade não pode ser concebida fora do divino, do que dá vida ao elemento divino no homem:
"Toda mística ensina que a profundidade do homem é mais que humana, que ela se esconde em um lugar misterioso com Deus e com o mundo. É em si mesmo que está o eu autêntico; é dentro e não fora que se quebra as barreiras por um trabalho totalmente interior." (Le Sens de la création, Bruges-Paris, 1955, pag. 376). 
O homem sempre é visto sob dois aspectos: este do homem exterior e este do homem interior. O primeiro se oferece ao olhar distraído. Para alguns ser a forma externa basta, por ela se engendra o apego, a paixão, o ciúme. A outra face não se revela a não ser àqueles que, para além da forma, consideram que o essencial pertence ao mistério e que é importante ter as disposições necessárias para abordá-lo: essas do amor e do recolhimento. A maioria das pessoas procuram em outro a ocasião para se divertir; outros, amorosos de infinito abordam no silêncio um além do temporal; conhecer o mistério constitui o limiar da eternidade.

O homem que recusa o mistério permanece na esfera da idolatria com tudo isso que ela comporta de egoísmo, de divisão e de finitude. Do contrário, o homem orientado para a realidade misteriosa encontra, depois de purificações mais ou menos dolorosas, a harmonia e a unidade.

O mistério que o homem contém está ligado à sua interioridade. Microcosmo e microtéos, o homem possui um lugar secreto com o mundo e com Deus, e é por sua interioridade que ele é espiritual e apenas a mística é capaz de apreender o mistério de sua relação com o mundo e com Deus:
"A mística anima e inspira a fonte e a raiz da vida religiosa. Ela é o fundamento essencial de todo conhecimento religioso. As religiões traduzem em consciência e em ser, isto que, na mística, é vivido e revelado no imediato (...). Os dogmas degeneram e morrem logo que perdem sua fonte mística". (Id., p. 377).

A mística que se desvia de um plano espiritual cessa, portanto, de responder à sua vocação.

A mística "anima (...) a vida religiosa" e no entanto as religiões aparecem sempre hostis com respeito aos místicos. Nicolas Berdiaev frequentemente volta sobre esta contradição que deve ser considerada a partir de diferentes níveis. Basta observar a história do pensamento religioso para se convencer disso. Como os místicos estão vivos, sua experiência parece inquietante; eles rasgam os véus e a opacidade é tranquilizada; eles possuem uma liberdade soberana e se desviam assim do rebanho. A necessidade de se adaptar à humanidade exige certa mediocridade, o primado é sempre dado à exterioridade por causa da facilidade.
"É somente assim que se torna compreensível a dualidade trágica do cristianismo no curso da história. (...) Pode-se dizer do cristianismo, de um lado, que é a religião mística por excelência e que é a religião menos mística que já existiu". (Id., p. 378).

Nicolas Berdiaev nota como certos sistemas teológicos são tentados a afirmar uma oposição entre a natureza e a graça. Às vezes o espírito aparece privado de propriedades independentes, ligado inteiramente à alma, fazendo parte da natureza; outras vezes o espírito é somente atribuído ao ser divino, ele se apresenta como a graça concedida pelo Espírito Santo. Mais frequentemente o espírito se encontra rejeitado da profundeza do homem. Considerar o homem como unicamente psico-corporal é o mesmo - dirá Nicolas Berdiaev - que significar o dualismo do Criador e da criação, do estado de graça e do estado de natureza. Uma tal atitude rejeita a realidade da imagem divina do homem.

"Tem-se por vezes a impressão que a teologia  oficial e os preceitos da Igreja se recusam em considerar o homem como um ser espiritual, guardando-os contra as tentações da espiritualidade. O cristianismo da alma é reconhecido como mais verdadeiro e mais ortodoxo do que o cristianismo do espírito. Ter consciência de si como ser espiritual provoca a acusação de orgulho; reconhecer-se indigno de possuir espírito e vida espiritual é qualificado como humildade." (Esprit et Liberté, pg. 52)

 A espiritualidade parece assim reservada aos santos e aos ascetas; toda vida espiritual que não se inscreva no interior da Igreja é considerada suspeita. Aqui estamos diante de um problema muito perturbador - dirá Nicolas Berdiaev. A Igreja é indulgente para com as fraquezas da alma, mas ela se mostra implacável quando se trata de uma espiritualidade vivida fora de sua autoridade. É assim que ela justifica sua desconfiança, mesmo sua condenação, com relação não somente aos reformadores espirituais, mas aos filósofos, aos poetas e também aos místicos cristãos no que diz respeito à sua vida espiritual.
"Assim se afirma um materialismo e um positivismo cristão original, o cristianismo foi proclamado a religião da alma e não do espírito". (Esprit et Liberté, pag. 53).
A este propósito, Nicolas Berdiaev falará acerca de um exoterismo cristão.

O esoterismo não recusa o exoterismo, sua função não é eliminá-lo, mas aprofundá-lo, esclarecer o exterior pelo interior.
"A carne do cristianismo exotérico não é menos real que o espírito deste cristianismo, a 'carne' e o 'espírito' desta consciência cristã refletem simbolicamente e na mesma medida, as realidades autênticas da vida espiritual, do mistério divino e da vida". (Id., pag. 58).
Raymond Abellio - numa fórmula feliz - considera que a função do esoterismo reside na transfiguração do homem. À questão: "O que é o esoterismo?", ele responde: "É o estudo e a experimentação das trevas interiores". ("L'Esprit moderne et la tradition", dans Paul  SERANT, Au seuil de l'esóterisme, Paris, 1955, p. 17).

Nicolas Berdiaev insiste sempre sobre o fato de que o cristianismo reconhece insuficientemente o papel do Espírito Santo. O Espírito está ainda "encarcerado" na alma, ignora-se que toda a vida espiritual está enraizada em Deus e no Espírito Santo. Certamente o temor da Igreja parece por vezes motivado em razão das  manifestações de pseudo espiritualidade, contudo sua prudência - por vezes totalmente humana - aparece estranhamente negativa aos olhos do homem e da realidade divina no homem. Toda experiência espiritual, pelo fato de ser pessoal, arrisca-se a ser suspeita. A heresia paira sobre o místico sempre acusado  de um eventual "desviacionismo".

Eu não posso tomar consciência da vida espiritual a não ser por minha própria experiência. Se eu a nego ou se eu afirmo que ela é o produto de uma imaginação ou de uma autossugestão, é porque eu não a experimentei. A vida espiritual não se pode descobrir pela reflexão. tentar circunscrevê-la é também deixá-la escapar. Todo pensamento discursivo e todo dado exterior não o podem alcançar. É porque é impossível provar a vida espiritual a um homem que se recusasse a autenticidade de sua existência. Nenhuma restrição pode aparecer nesta ordem. Da mesma maneira, é impossível provar a um homem que não tem a experiência do divino a realidade de Deus.
"A vida espiritual é uma realidade extra-objetiva, ela não está ligada a qualquer determinação de tempo, de espaço ou de matéria, é uma realidade ideal em comparação à esta do mundo objetivo, é a realidade da Vida Inicial" (Id., pag. 36).
Na vida espiritual não existe nem objeto, nem sujeito refletindo o objeto, pois tudo lhe está identificado. Que a consciência do homem médio se recuse a experiência espiritual, sua recusa ainda que desprovida de qualquer significado não deve nos surpreender. O homem situado unicamente no mundo natural não ultrapassa os limites deste mundo, ele se exprime através do que ele conhece. Ora, se o que ele conhece não excede as fronteiras do psiquismo ou do psicológico, ele não vai para além do mundo da alma, ele permanece subordinado às leis do mundo natural cuja vida verdadeira está ausente, pois tudo para ele está situado no tempo, no espaço e na matéria; ele ignora então a profundidade misteriosa onde o espírito de revela. Neste nível a alma e o próprio Deus são realidades análogas a estas do mundo material; Deus se torna então uma substância inerte. Deste fato a alma, o mundo e Deus estão divididos, um abismo inultrapassável os separa. O mundo corporal e psíquico é um mundo onde tudo está em ruptura. Na medida onde eu sinto dolorosamente meu isolamento, onde a angústia nascida de meu divórcio me faz chorar, eu posso reconhecer meu pertencimento ao mundo natural. Neste caso, não existe qualquer experiência espiritual. Tal experiência "só é possível supondo-se que o homem é um microcosmo, que nele se revela todo o universo, e que não existem limites transcendentes isolando a alma de Deus do mundo". Se aceitamos esta realidade, não existe qualquer solidão interior, o mundo divino é um, ele abraça a totalidade num movimento que é a própria vida.
"A vida espiritual se cumpre fora do tempo, do espaço, da matéria, embora esteja ligada a eles como a uma imagem simbólica da divisão interior do espírito". (Esprit et Liberté, pag. 41)
Pode-se crer que tal vida espiritual se manifeste em uma ordem abstrata. Ora, nada é mais concreto que a vida espiritual autêntica; uma vida espiritual abstrata seria uma forma imperfeita. O desapego, o ascetismo, a purificação se apresentam como caminhos necessários mas não indicam o ponto em que as metas precisam convergir. A vida espiritual considera a realidade do mundo natural, psíquico, psicológico, tais realidades como sua própria "simbolização", como reflexo de sua interioridade que ela não despreza. Assim a "carne é a encarnação e o símbolo do espírito", deste fato o espírito não desconsidera a carne, ele não se opõe a ela, ele a assume livremente e a transfigura, pois o espírito não é apenas liberdade, é amor e por conseguinte união; é o ponto entre Deus e o Mundo. Graças a Este amor ele não se afasta do natural e do psiquismo, sendo sua função os espiritualizar.

O amor para com a natureza, quer se trate de minerais, vegetais ou animais, cria uma comunhão e se afirma como uma experiência espiritual. A experiência do amor, a contemplação da beleza operam um retorno do homem para o cosmos, da mesma maneira que um cosmos transfigurado opera um retorno em direção ao homem.

No interior do cristianismo uma dupla atitude é sempre apresentada particularmente ao olhar da mística. A este propósito Nicolas Berdiaev distingue - e ele não é o primeiro a estabelecer tal diferenciação - entre a Igreja de Pedro e a Igreja de João:
"A Igreja em sua ação histórica universal e sua adaptação ao nível médio da humanidade foi em grande parte a Igreja de Pedro, de onde se deriva a supremacia do clero.  A tradição judaico-cristã remonta a Pedro. A igreja católica se reconhece abertamente como a Igreja de Pedro, mas a Igreja Ortodoxa recebe também sua preeminência. Pedro foi o apóstolo do nível médio da humanidade. (...) Os santos e os místicos foram os vivos depositários da tradição joanina". (Le Sens de la création, Op. Cit., pag. 379).

 Nicolas Berdiaev insiste sobre esta distinção que, de fato, se assevera de extrema gravidade. A história religiosa apresenta épocas nas quais "Pedro" triunfa, e em outros períodos no quais "João" anima numerosos místicos. É neste contexto de grande interesse estudar a história religiosa através dos místicos e inseri-los em um contexto no qual pode-se facilmente perceber a prioridade dada a Pedro ou a João. bem entendido, estes diferentes aspectos se imbricam, mas por vezes um domina às expensas do outro. Estas duas características de uma mesma religião correspondem à alma e ao espírito. De um lado o psíquico - e de outro o espiritual. O ato criador do homem de dentro do espírito depende do pensamento joanino.

As consequências deste contraste - pode-se dizer deste combate - entre o cristianismo de Pedro e este de João são decisivas. Falando de alienação religiosa, Nicolas Berdiaev volta frequentemente sobre este tema que pode se concretizar assim: socialização do espiritual e, por oposição experiência espiritual pessoal. Encontra-se aqui dois pólos privados de relação, não somente por suas diferenças, mas não relacionados um ao outro. A religião do amor deve se desenvolver no mundo: "ela deve ser a religião da liberdade ilimitada do espírito".
"A Igreja do amor é a igreja de João. A Igreja Eterna, mística, abrigando em si mesma a plenitude da verdade sobre Cristo e sobre o homem". (Id., pag. 424).
A vida espiritual autêntica, é tensão para o futuro incluindo a transfiguração, isto é a aparição de um novo céu e de uma nova terra, leva ao profetismo e à gnose. O espiritual socializado é espiritual apenas no nome, sua submissão à "terra", à ética da lei resulta em uma desespiritualização. Na medida em que o espiritual é socializado , ele é constantemente desprezado; as formas que tentam manifestá-la perecem durante os incidentes da história. Daí o desânimo dos cristãos de hoje diante da mudança de valores. Ao contrário, a experiência espiritual não pode jamais ser posta em questão  pois ela não está no tempo; sempre nova em sua apreensão, ela não pode envelhecer ou estar inadaptada a um tempo determinado. Em outros termos, uma forma religiosa dessacralizada pode parecer antiquada, por outro lado, uma experiência espiritual conectada ao sagrado escapa ao desgaste, porque ela cai na eternidade. A forma religiosa, laicizada pelo fato de sua dessacralização, é secularizada, a experiência espiritual não é jamais profanada pela laicização.

A socialização do espiritual se apresenta sob a forma de uma tentação permanente na história do cristianismo. Desde o século segundo a experiência espiritual pessoal é amargamente combatida. De tempos em tempos as vozes dos místicos aparecem, tentando-se reduzi-las. Entretanto, sempre existirá homens inspirados, fiéis à mensagem de Cristo, aceitando no espírito a beatitude do sarcasmo, das condenações e por vezes mesmo até da morte.

Nicolas Berdiaev atribui grande importância à tentação de Jesus no deserto relatada por Mateus 4:1 e Lucas 8:29. Esta tentação, Jesus repeliu por três vezes, mas - dirá nosso autor - "os cristãos sucumbiram na história a esta tentação".

Esta tentação recusada pelo Cristo é aceita pela maioria dos cristãos simboliza a socialização do espiritual.

Este problema essencial na obra de Berdiaev, e alhures vital para o cristianismo e os cristãos, consiste - veremos - na experiência espiritual pessoal considerada em sua oposição ao olhar da socialização do espiritual que é a mais grave das alienações religiosas. A mais grave, pois a socialização do espiritual desloca Deus e o homem. Com efeito, a socialização do espiritual é por vezes deicida e homicida: pois ela faz do homem um robô e Deus não mais do que a criação deste robô.

Em seu estudo publicado no Eranos Jahrbuch (1962) sob o título: "O combate espiritual do shî'ismo", Henry Corbin pôs tal questão de modo magistral. Ele cita alhures Berdiaev e se inspira nos principais temas considerados no l'Essai de Métaohysique eschatologique. Henry Corbin mostra com pertinência as consequências da socialização da experiência religiosa. Ele suspeita de "uma conexão secreta e fatal entre o acontecimento e as exigências da fides historica e a preparação de uma era que será esta do materialismo histórico". (p. 78)

Consideremos a gravidade desta proposta concernente aos efeitos da socialização religiosa. Toda religião verdadeira deveria ser mística, na medida em que ela se opõe à mística, ela se trai. A mística - como alhures o profeta - não pode senão se insurgir contra a socialização do espiritual.

É em tal contexto que os termos do "profetismo" e da "gnose" podem ser empregados a propósito do pensamento de Nicolas Berdiaev: aqui uma atenção particular é exigida do leitor a fim de evitar o risco de distorção.

O conceito de profecia, como lhe precisa André Neher em sua obra A Essência do profetismo (Paris, PUF, 1972, pag. 1), deve ser dissociada da ideia de antecipação. No sentido corrente do termo, o profeta prediz. Ora, a clarividência do profeta não está ligada necessariamente ao futuro, ela possui seu próprio valor. O que o profeta revela, "não é o futuro, é o absoluto. O profeta responde à nostalgia de uma consciência, mas não a consciência do amanhã: e sim esta de Deus".

Esta realidade do profetismo , nós a encontramos, por exemplo, na grande freira visionária do século XII, santa Hildegarde. Na primeira visão, Hildegarde entende a voz de Deus, dizendo: "Abre a cortina dos mistérios". Trata-se aqui de uma atividade de ordem carismática, no interior do dom da inteligência. Neste sentido, Nicolas Berdiaev é um profeta. Ele alude voluntariamente a um estado de êxtase quando escreve. Este estado de êxtase é iluminação, consciência, desvelamento. Neste último ponto, profetismo e gnose se conjugam.

Quando um filósofo ou um teólogo ocidental tratam Berdiaev de "gnóstico", trata-se frequentemente mais de um julgamento pejorativo ou ao menos incluindo algumas reservas com relação a ele e suspeitando de sua ortodoxia. Esta mesma reprovação foi formulada por espíritos maliciosos com respeito a Simone Weil. De fato, o problema da gnose é um dos mais difíceis de apreender, e a ignorância é frequentemente a base para uma preocupação abusiva.

Se Nicolas Berdiaev pode ser dito - de uma certa maneira - um gnóstico, seu pensamento é todavia privado de toda a relação com a gnose heterodoxa; o dualismo maniqueísta lhe é totalmente estranho. Não se encontra em seu pensamento qualquer evidência panteísta. Não existe nele oposição - enquanto dualidade - entre luz e trevas, o conhecimento e a ignorância, o espírito e a matéria. Tivemos muitas vezes a ocasião de examinar esta questão. Para Berdiaev, "a carne do mundo é um símbolo do mundo... Nós vivemos em um mundo derivado, segundo, refletido". Tudo é orientado, o homem e o mundo, para a transfiguração. A alma não está aprisionada na matéria, nenhuma "queda" da luz ocorreu, não há iluminação no pensamento de Berdiaev. Sua gnose se parece com a de Jacob Boehme; ela leva em conta também a Cabala. Ela consiste exatamente na consciência do sentido oculto, isto é do esoterismo da verdade religiosa. É sempre a passagem da letra ao espírito, da ética da lei à ética criadora.

Segundo Berdiaev a gnose é necessária, apenas ela assegura a perenidade do verdadeiro cristianismo. O gnóstico possui uma experiência espiritual imediata, pode-se dizer "homem espiritual", "homem interior". A diferenciação entre os "pneumáticos" e os "psíquicos" proposta pela gnose é sempre válida. Ela não supõe uma dualidade no seio do cristianismo, ela significa somente dois planos: de um lado as observações exteriores, e de outro penetrando com o amor no mistério da revelação. Este conhecimento não é extrínseco ao Antigo e ao Novo Testamento. O reencontramos em São Marcos e em São João. Para se convencer, basta recorrer aos seus textos: "À nós, discípulos escolhidos, é dado conhecer os mistérios do Reino de Deus. Mas à multidão, as coisas são ditas em parábolas, a fim de que eles vendo não entendam e ouvindo não compreendam". (Marcos 4: 10-12). São João faz alusão à luz divina que as trevas não podem abarcar (1, 5); dirigindo-se à Samaritana, ele evoca à consciência (4,23).

São Paulo menciona o conhecimento próprio ao "pneumático", o pneuma divino iluminando o pneuma humano. Jean Baruzi - em seu estudo Création religieuse et pensée contemplative que já citamos - falou desta gnose paulina como de uma "nova plástica do ser" (pag. 88). A metamorfose pela renovação do nous (que tem aqui o sentido de pneuma) (cf. Rom., 12, 2) designa após Baruzi a passagem do homem carnal ao homem psíquico e ao homem espiritual. "O homem que organiza o estado pneumatikos desenvolve em si isto que será um dia o 'corpo espiritual' (...) Paulo e outros como ele parecem ter chegado a uma espécie de nova criação de seu ser."

Tal é a gnose de Nicolas Berdiaev culminando na visão teofânica. Ela coincide com o despertar do espírito no homem. O gnosticismo é então uma atitude existencial. Originalmente, os espirituais não são diferentes dos psíquicos, pois todo homem é virtualmente espiritual. Todavia, há poucos gnósticos, já que apenas um pequeno número é capaz de receber uma revelação. Por prudência, para evitar os erros, o cristianismo oficial sempre tentou neutralizar a pesquisa da consciência.

O gnóstico - cujo corpo espiritual se forma graças à luz de sua consciência que modifica seu ser - é orientado para uma perspectiva escatológica. Este termo em seu sentido etimológico se aplica às coisas finais. Refere-se a um além cuja originalidade não é de se situar fora do tempo e de pertencer a um mundo superior, mas de se relacionar com o mundo em sua transformação. Nesta perspectiva, a salvação designa a passagem do mundo da carne a este do espírito. Pneumatismo e escatologia, de fonte paulina e joanina, são a base do pensamento religioso ortodoxo oriental. Berdiaev volta - como já vimos - frequentemente a este tema. Quer se trate do homem ou do cosmos, existe uma espera ansiosa da criação. Desta impaciência inscrita no mais profundo do ser, o gnóstico possui uma profunda intuição. Místicos e gnósticos sabem que o filho de Deus tem por missão revelar ao mundo a vigilância desta espera que pode ser comparada a um estado em que se assiste desde a véspera os signos da realização do Reino de Deus. É um movimento soberanamente ativo pois esta espera plenificada fornece a glória do homem e do cosmos rendido ao seu verdadeiro destino.

Um tal movimento comporta o fim do mundo, de que nós já falamos, e o fim do homem que nós tentaremos brevemente considerar aqui. Trata-se da morte que Berdiaev dirá ser "o paradoxo mais prodigioso do mundo".

Sobre o plano natural, a morte se apresenta como uma objetivação e uma temporalização do ser, ela designa de fato o ponto culminante da existência pois ela é signo de nossa profundeza, de nossa conexão com a eternidade que provoca continuamente em nós uma agonia aparentando-se por vezes a uma nostalgia. A morte foi santificada pelo Cristo e por Ele vencida: "Toda existência deste mundo deve passar pela morte, pela crucificação, sem a qual ela não poderia esperar a ressurreição, a eternidade". (Destination de l'homme, pag. 327).

As páginas de Nicolas Berdiaev sobre a morte estão entre as mais belas; a angústia excessiva se apresenta como um poema em louvor à eternidade. Certamente a eternidade se delineia no tempo, mas o homem se arrisca sempre a ser tomado pela mundanidade, a dispersão, e neste sentido a morte é unificante. Pela morte o homem recebe uma revelação suprema e comunica ao mistério o mais profundo da vida. Na medida em que o homem escapa à quotidianidade, o terror da morte se desvai. A morte pode conservar seu caráter formidável, ela se apresenta com uma serenidade muito grande, na doença ou no medo do acidente; na guerra como no martírio da fé ou de uma ideia.
"Se a vida é estreitamente ligada à morte, ela não é em sua fraqueza, como se poderia crer num primeiro momento, mas em sua força, em sua intensidade, em sua superabundância. (...) É também isto que se revela no amor. Com efeito a paixão, que é a manifestação mais intensa da vida, contém sempre os gérmens da morte; aquele que acolher o amor em sua força superabundante e trágica, é obrigado a acolhê-la também. Aquele que é vital escapa ao destino do amor". (De destination de l'homme, Paris, Je sers, 1935p. 329)

 Berdiaev se dirige raramente a um interlocutor, ele o faz aqui com uma simplicidade cuja beleza é impressionante:

"Ajusta-te a olhar os vivos com o olhar dos mortos, e a olhar os mortos com o olhar dos vivos. Dito de outro modo, lembra-te sempre da morte como o mistério da vida e, tanto na vida como na morte, afirme incansavelmente a vida eterna." (Id., pag. 329).

Por último, o fim ao qual a ética deve tender, se dirige a todos os homens, tanto vivos quanto mortos. Trata-se da "libertação criadora de todos estes que sofrem, de todos estes que subsistem aos tormentos, quer eles sejam temporais ou eternos, libertação sem a qual o Reino de Deus não se instauraria". Isto que significa, para Nicolas Berdiaev uma vitória sobre o inferno, enquanto "inferno eterno". "Os 'bons' não conduzem os "maus" à perdição e nem procuram seu próprio triunfo, mas descem eles mesmos ao lado de Jesus para os libertar". (Id., p. 375). Esta libertação não se faz pela violência, "apenas o Deus-Homem, que une misteriosamente em si a Graça e a Liberdade, conhece o mistério desta libertação". (Id., 376). Nós estamos aqui distantes da doutrina de Tomás de Aquino falando dos "bons" se alegrando com a manifestação da justiça divina diante do sofrimento dos "maus". Esta doutrina foi também a de numerosos cristãos. Nicolas Berdiaev faz apelo, a propósito do mistério da libertação, à docta ignorantia, pois os "maus" não podem ser "trazidos ao bem, no sentido que nós damos aqui a este termo. Eles só podem ser conduzidos ao Bem Supremo, quer dizer ao Reino situado para além do Bem e do Mal". (Id., pag. 376)

Inferno e paraíso são vencidos no interior da experiência humana, um e outro são símbolos da experiência espiritual. "O inferno sendo (...) uma negação da eternidade, uma impossibilidade de ascensão e comunicação. Não pode existir uma eternidade infernal, só pode existir uma eternidade divina". (Id., pag. 346).

A experiência do inferno, enquanto experiência de rejeição ao mal, conduz ao paraíso. "Nós temos uma antecipação do paraíso no êxtase, na qual nosso tempo se rompe, nossa distinção entre bem e mal se revoga, onde é dado ao homem conhecer uma libertação definitiva e onde todo peso desaparece para ele". (Id., pag. 371).

Místicos e gnósticos participam da transfiguração do mundo, preparando o acontecimento do Reino de Deus, no qual eles penetram já em instantes fugidios. Sua missão - alhures a vocação de todo cristão - é despertar o espírito para esta mesma e colaborar com a obra do Espírito Santo. Esta libertação é uma Sabedoria.

Lembrem-nos que a palavra "Espírito" é feminino nas línguas semíticas. Na escola judaica de Alexandria, a Mãe divina é assimilada à Sabedoria, à Sofia, quer dizer à esfera mais exterior do mundo.

Aqui ainda, Berdiaev se inspira em Boehme para quem a Sofia é simbolizada pela feminilidade eterna, a virgindade eterna. A feminilidade apresenta um duplo aspecto celeste e terrestre. O homem inicial é considerado como uma criatura misturada, é um andrógino. Berdiaev expõe o pensamento de Soloviev sobre a Sofia em que tudo é considerado insuficiente. Para ele "A sapiência é (...) a beleza do criado".
"A sapiência do homem é sua pureza, sua integridade, sua castidade e sua virgindade; e pureza, integridade, castidade e virgindade permanecem na criação inteira, enquanto possibilidade de sua transfiguração. A Virgem - Sofia - é assunta ao céu, mas sua imagem se reflete sobre a terra e a atrai para ela". (Étude sur Boehme: Mysterium Magnum, t. I, pag. 42)

A consciência gnóstica no sentido em que nós o precisamos, contempla sobre a terra os reflexos da Sofia. E os medita com tanta agudeza que seu olhar lúcido é intuitivo: ela decifra os vestígios que recobrem os traços divinos.

 Em Les Révélations de la Mort: Dostoievski, Tolstoi, Léon Chestov fala dos homens que possuem "seu próprio saber, solitário, injustificado, injustificável". Aqueles que foram visitados pelo Anjo da Morte que é inteiramente coberto nos olhos. Quando este "Anjo da Morte percebe que chegou muito cedo, que o termo do homem ainda não expirou, então ele não leva sua alma, e não se mostra a ela; mas ele deixa ao homem um dos numerosos pares de olhos onde seu corpo está coberto. Então o homem além de ver mais do que os outros homens e ele vê mesmo com seus olhos naturais coisas novas e estranhas". ( Les Révélations de la Mort: Dostoievski, Tolstoi, Paris, 1925, p. 6)

Parece que Nicolas Berdiaev recebeu a visita do Anjo da Morte. A gente poderia se perguntar: em qual instante ele foi seu anfitrião e lhe deixou um par de olhos misteriosos? Sem dúvida durante um de seus êxtases criadores, rápidos mais fulgurantes, que são a abolição do tempo histórico, penetração na eternidade. Desta eternidade que ele tinha nostalgia e que ele nos faz amar.

Aqui ainda temos de nos exercitar no paradoxo, pois o Anjo da morte é o Anjo da Vida.





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