segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Piedade e Altruísmo

O texto a seguir é de Vladimir Solovyov, poeta, filósofo e teólogo russo.
Trata-se do terceiro capítulo do livro: The Justification of the Good, An essay on Moral Philosophy.Michigan, eerdman Publishing Co, 2005. Páginas 53 a 67,

Solovyov, que foi amigo confidente de Dostoiévki, compartilhava com o amigo o amor pelo cristianismo, ainda que ele fosse favorável ao catolicismo romano, ao qual se converteu. Solovyov, como eu também, julgava que a missão de seu vida era lutar pela unidade das duas Igrejas Católicas. Para tanto, Solovyov considerava necessário que a Igreja ortodoxa se submetesse à autoridade de um hierarca, neste caso, o papa.

Piedade e Altruísmo

I)
Por muito tempo se pensou - e muitos começam a pensar assim também - que a mais alta virtude ou santidade deve ser encontrada no asceticismo e na 'mortificação da carne', na supressão das inclinações e afecções naturais, na abstinência e liberdade das paixões. Nós vimos que este ideal contém indubitavelmente alguma verdade, pois é claro  que o lado mais elevado e espiritual do homem tem de dominar o mais baixo e material. Os esforços da vontade nesta direção são os atos de autopreservação espiritual e a primeira condição de toda a moralidade. A primeira condição, porém, não pode ser considerado o fim último. Um homem deve fortalecer seu espírito e subjugar sua carne, não porque este seja seu propósito de vida, mas porque apenas quando ele é liberto da escravidão cega e dos maus desejos materiais que ele pode servir à verdade e à bondade no caminho certo e atingir a real perfeição.

As regras de abstinência fortalecem o poder espiritual do homem que as pratica. Mas de modo que o espírito fortalecido pode ter dignidade  moral - isto é, pode ser bom e não mau - isto deve unir os poderes sobre sua própria carne com atitudes probas e caritativas em relação aos outro seres. A história mostrou que, sem esta condição, a supremacia do princípio ascético, mesmo quando combinado com uma religião verdadeira, conduz a consequências terríveis. Os ministros da Igreja Medieval, que costumavam torturar e queimar hereges, Judeus, feiticeiros e bruxas, eram na maior parte das vezes homens irreprováveis de um ponto de vista ascético. Mas a força unilateral do espírito e a ausência de piedade fizeram deles demônios encarnados. Os frutos amargos do asceticismo medieval justificam suficientemente uma reação contra ele, que é, na esfera da filosofia moral, conduzida pela supremacia do princípio altruísta na moralidade.

Este princípio é profundamente enraizado em nosso ser na forma do sentimento de piedade que um homem tem em comum com outras criaturas vivas. Se o sentimento de vergonha o diferencia do resto da natureza e o distingue dos outros animais, o sentimento de piedade, ao contrário, o une com todo o mundo vivente. E isso em um duplo sentido: em primeiro lugar porque o homem o compartilha com todas as outras criaturas viventes, e em segundo lugar, porque todas as criaturas viventes podem e devem ser objeto deste sentimento humano.


II)
Que a base natural de nossa relação moral com os demais é o sentimento de piedade ou compaixão, e não o sentimento de unidade e solidariedade em geral, é uma verdade que independe de qualquer sistema metafísico[i] e não envolve uma visão pessimista do mundo e da vida. Como é bem sabido, Schopenhauer mantém que a natureza última do universo é a Vontade, e vontade é essencialmente um estado de insatisfação (pois satisfação implica que não há nada para desejar).  Neste ponto, insatisfação ou sofrimento é a determinação fundamental e positiva de toda a existência em seu aspecto íntimo e o vínculo moral inerente a todos os seres é compaixão.  Mas completamente a parte a esta teoria duvidosa – e os cálculos igualmente dúbios de Hartmann, que tenta provar que a soma de dor é incomparavelmente maior do que a soma de prazer – nós descobrimos que da natureza da questão posta, a única base da relação moral com os outros seres é, como questão de princípio, se ver em estado de piedade ou compaixão, e certamente não de co-regozijo ou co-prazer.
Deleite humano, prazer e alegria podem obviamente ser inocentes e mesmo positivamente bons – e em algum caso compartilhá-los tem um caráter moral positivo. Mas, por outro lado, prazeres humanos podem ser, e frequentemente são, imorais.  Um homem perverso e vingativo encontra prazer em insultar e atormentar aqueles que lhe estão próximos, regozija-se em sua humilhação, deleita-se no prejuízo que acarreta. Um homem sensual encontra o gozo máximo na devassidão; um homem cruel em matar animais e mesmo seres humanos; um bêbado fica feliz quando está se estupidificando a si mesmo com bebida, etc. Em todos estes casos o sentimento de prazer não pode ser separado das más ações que o produzem, e algumas vezes, de fato, o prazer dá um caráter imoral a alguma ações que seriam, em si mesmas, indiferentes. Assim quando um soldado na guerra mata um inimigo por causa do comando e de nenhum outro motivo que não seja o cumprimento do ‘seu dever como soldado’, ninguém o causaria de uma crueldade imoral, qualquer que possa ser nossa atitude na guerra.  Mas isso se torna diferente se ele encontra prazer em matar e baioneta um homem com gosto. Em mais alguns casos a coisa é ainda mais clara; assim, é óbvio que a imoralidade do bêbado não consiste na ação externa de tragar certos drinques, mas no prazer inerente que um homem encontra em artificialmente estupidificar a si mesmo.
Mas se um certo prazer é em si mesmo imoral, a participação nele por qualquer outra pessoa (co-regozijo; co-prazer) também recebe um caráter imoral. O fato é que a participação positiva em um prazer implica a aprovação daquele prazer. Assim, ao compartilhar o deleite do bêbado em seu prazer favorito, eu aprovo a bebedeira; ao compartilhar a alegria de alguém por uma vingança bem sucedida, eu aprovo a vingança. E já que estes prazeres são maus prazeres, aqueles que simpatizam com eles os aprovam no que têm de ruim, e consequentemente são culpados eles mesmos de imoralidade. Como uma participação em um crime é ela mesma reconhecida como crime, assim simpatizar com prazeres viciosos ou deleitar-se neles deve ser pronunciado em si mesmo como vicioso. E de fato a simpatia com o mau prazer não apenas envolve aprovação dele, mas também pressupõe a mesma má propensão no simpatizante. Apenas um bêbado se deleita na bebedeira de outra pessoa, apenas um homem vingativo se regozija na revanche de outro. A participação nos prazeres ou gozos de outros podem então ser bons ou maus de acordo com seus objetos; e se ele pode ser imoral, ele não pode, enquanto tal, ser a base para uma relação moral.
 A mesma coisa não pode ser dita sobre sofrimento e compaixão. De acordo com toda ideia disto, sofrimento é um estado em que a vontade daquele que sofre não tem parte direta ou positiva. Quando falamos de ‘sofrimento voluntário’ nós queremos dizer, não que o sofrimento como tal seja desejado, mas que o objeto da vontade torna o sofrimento necessário, em outras palavras, que o objeto da vontade é o bem que é atingido pelo sofrimento. Um mártir sofre tormentos, não para o seu próprio bem, mas porque nas circunstâncias elas são consequência necessária de sua fé e um meio para uma glória mais elevada e para o Reino de Deus. Por outro lado, sofrimento pode ser merecido, i. e., sua causa pode jazer em más ações; mas o sofrimento como tal é distinto de sua causa e não contém nenhuma culpa moral; pelo contrário, ele é reconhecido como sua expiação e redenção.  Que a embriaguez seja um pecado, nenhum moralista, mesmo dos mais severos, pronunciaria que a dor de cabeça que resulta dela seja um pecado também. Por esta razão a participação no sofrimento dos outros (mesmo quando eles merecem) – isto é, piedade ou compaixão – nunca pode ser imoral. Em comiseração com quem sofre, no mínimo, só não aprovo a causa do mal de seu sofrimento.  Piedade pelo sofrimento do criminoso não significa aprovar o justificar seu crime. Pelo contrário, quanto maior minha piedade pelas funestas consequências do pecado de alguém, quanto maior minha condenação de seu pecado.
Participação na alegria dos outros têm sempre um elemento de auto-interesse. Memso no caso de um velho homem compartilhando a alegria de uma criança duvido que ele possa sentir isso como sendo um sentimento de natureza altruísta; pois em qualquer caso é agradável para um velhinho refrescar a memória de sua própria infância. Pelo contrário, todo genuíno sentimento de lamento com relação ao sofrimento alheio, mesmo se moral ou físico, é uma aflição pela pessoa que experimenta aquele sentimento, e é consequentemente o oposto do egoísmo. Isto é claro do fato que a dor sincera com relação aos outros perturba nossa alegria pessoal, nos desanima, isto é, prova ser incompatível com o estado de satisfação egoísta.  A compaixão e piedade genuínas não possuem nenhuma motivação egoísta e é puramente altruísta, enquanto o sentimento de co-prazer e co-regozijo é, de um ponto de vista moral, uma mistura de sentimentos indefinidos.
  

III)
Há outra razão de porque a participação nas alegrias ou prazeres dos outros não podem por si mesmos ter alguma importância fundamental para a ética como o sentimento de piedade ou compaixão. A demanda da razão é que a moralidade deve ser baseada apenas em sentimentos tais que sempre contenham um impulso para ações definidas e sendo generalizadas, possam dar nascimento a um princípio moral definido ou a princípios. Mas prazer ou gozo são o fim da ação; nele alcança-se o propósito da atividade e a participação no prazer dos outros também como experiência de seu próprio prazer não contém nenhum impulso e nenhum fundamento para ações posteriores. A piedade, ao contrário, nos impele diretamente a agir de maneira a ajudar um companheiro e salvá-lo do sofrimento. A ação pode ser puramente íntima – assim a piedade para com meu inimigo pode prevenir-me de insultá-lo – mas em qualquer caso é uma ação e não um estado passivo como gozo ou prazer. Claro, eu posso encontrar satisfação íntima no fato de não ter machucado meu próximo,  mas isso só pode acontecer depois do ato da vontade ter tomado lugar. Similarmente, no caso de prestar ajuda a um companheiro que está na dor ou necessidade, o prazer ou alegria que resultam disto, tanto para ele quanto para quem o ajudou, é apenas a consequência final e a culminação de um ato altruísta, e não sua fonte ou seu fundamento. Se eu vejo ou escuto que alguém está sofrendo, uma das duas coisas acontecem. Ou que o sofrimento de alguém me convoca a sentir também certo grau de dor e à experiência da piedade – naquele caso que o sentimento é uma razão direta e suficiente para que eu preste ajuda ativa. Ou, se o sofrimento de alguém não desperta piedade em mim ou se ela não se desenvolve suficientemente para incitar-me ao ato, a ideia de prazer que sucederia de minha ação seria obviamente ainda menos atrativa para fazer algo. É claro que um pensamento abstrato e condicionado a um estado mental futuro não pode possivelmente ter mais efeito do que a contemplação imediata ou representação concreta de um estado físico atual e mental que chame por uma ação direta. Logo o verdadeiro fundamento ou causa produtora (causa efficiens) de toda ação altruísta é a percepção ou ideia do sofrimento de outra pessoa como ele existe em ato no momento, e não o pensamento de prazer que pode nascer no futuro como resultado de um ato benevolente. Claro se uma pessoa decide sem o auxílio da piedade ajudar um companheiro em aflição, ele pode, se tiver tempo para tal, imaginar – especialmente com base em uma experiência rememorada do passado – a alegria que ele logo dará a si e aquela outra pessoa. Mas tomar este pensamento concomitante e acidental como o verdadeiro motivo da ação é contrário tanto à lógica quanto à experiência psicológica.
Por um lado, então, a participação na alegria e prazer atuais dos outros não podem da natureza do caso conter ou um estímulo para a ação ou uma regra de conduta, pois nestes casos a satisfação já é atingida. Por outro lado, a representação condicional de um prazer futuro que se supõe seguir da remoção do sofrimento, pode ser apenas uma adição secundária e indireta para o sentimento atual de compaixão ou piedade que nos move para fazer o bem ativo. Consequentemente, é este sentimento apenas que deve ser pronunciado a ser o verdadeiro fundamento da conduta altruísta.
Aqueles que se  apiedam dos sofrimentos dos outros participarão com certeza em seus gozos e prazeres quando mais tarde esses estiverem sãos e salvos. Mas esta consequência moral da relação moral com os outros não pode ser considerada como a base da moralidade, a qual diz que apenas é verdadeiramente bom quem é bom em si mesmo e consequentemente sempre preserva seu bom caráter, nunca tornando-se mal. Logo, a moralidade (ou o bem) em qualquer esfera dada de relações pode ser baseada apenas nos dados de que uma regra geral  e absoluta de conduta que possa ser deduzida. Tal precisamente é a natureza da piedade para com nossos companheiros. Sentir piedade de todos os que sofrem é sempre e incondicionalmente  bom; é uma regra não que requer nenhuma reserva. Mas participar nas alegrias e prazeres dos outros pode ser aprovada condicionalmente apenas e mesmo quando é louvável e assim ela não contém, como vimos, nenhuma regra de  conduta.



IV
O fato inquestionável e familiar que um ser individual distinto pode transcender em sentimentos os limites de sua individualidade, e responder dolorosamente ao sofrimento dos outros, sentindo como se fosse sua própria dor, pode aparecer a algumas mentes misterioso e enigmático. Foi reconhecido como o filósofo que encontrou na compaixão o único fundamento da moralidade.
“Como é possível”, ele pergunta, “que o sofrimento que não é meu deva tornar-se um motivo imediato de minha ação no mesmo sentido como se fosse meu próprio sofrimento?” “Isto pressupõe”, ele prossegue, “que eu tenho certa identificação com o outro, e que a barreira entre o eu e o não-eu seja no momento removida. É então apenas que a posição do outro, seu querer, sua necessidade, seu sofrimento, imediatamente se torna meu. Eu não o vejo mais como me é dado na percepção empírica – como algo estranho e indiferente a mim, como algo absolutamente  separado de mim. Pelo contrário, na compaixão sou Eu quem sofre nele, apesar de sua pele não cobrir meus nervos. Apenas através de tal identificação pode seu sofrimento , sua necessidade, tornar-se um motivo para mim em um modo que ordinariamente se torne meu próprio sofrimento. Este é o fenômeno mais misterioso – é um mistério real da  Ética, pois é alguma coisa para qual a razão não pode dar conta diretamente e cujos fundamentos não podem ser descobertos empiricamente. E ainda é de ocorrência diária. Cada um sente em si mesmo e o vê em outras pessoas. Acontece todos os dias diante de nossos olhos em pequena escala em casos individuais cada vez que um homem, movido por um impulso imediato, sem qualquer reflexão posterior, ajude outro e o defenda, algumas vezes arriscando sua própria vida e pela salvação da pessoa que acabou de ver, não pensando em nada senão na aflição evidente e nas necessidade daquela pessoa. Acontece em larga escala quando toda uma nação sacrifica seu sangue e sua propriedade para defesa e libertação do outra nação, geralmente oprimida. Pois tais ações merecem uma aprovação moral incondicional, e é necessário que consideremos que um ato misterioso e de compaixão ou uma identificação interna de alguém com outro possa não ter segundas intenções.
Esta discussão do caráter misterioso da compaixão é distinguido pela eloquência literária  mais do que pela verdade filosófica. O mistério não é fundamentado no fato mesmo, mas numa descrição falsa, que exagera sobre os termos extremos da relação, e deixa os elos que os conecta inteiramente fora de consideração. Nesta esfera Schopenhauer abusou do método retórico de contraste e antítese quase tanto o fez Victor Hugo. A questão é descrita em tal sentido como se fosse dado um ser absolutamente separado de outro que de repente se identificasse totalmente com o outro por meio do sentimento de compaixão. Isto seria, de fato, o supremo dos mistérios. Mas em verdade, nem a absoluta separação nem a identificação imediata existem de todo. Para entender qualquer relação, devemos em primeiro lugar tomar o exemplo disto mais fácil e elementar. Considere o instinto maternal dos animais. Quando uma cadela defende seus filhotes ou sofre ao perdê-los, de onde vem  todo o mistério de  que fala Schopenhauer? São estes filhotes algo de “estranho” e “indiferente” às suas mães? Entre ela e eles houve, em primeiro lugar, uma conexão física e orgânica, clara e óbvia para a observação mais simples e independente de toda metafísica. Estas criaturas foram uma vez parte de seu próprio corpo, os nervos dela e os seus foram cobertos pela mesma pele, o início da existência deles envolveu uma mudança no organismo dela, dolorosamente refletida em suas sensações. Com o nascimento, esta conexão orgânica é enfraquecida, torna-se perdida, podemos dizer, mas ela não é completamente abandonada ou substituída por uma “separação absoluta”. Logo a participação de uma mãe no sofrimento de suas crianças é um fato tão natural quanto a dor que sentimos ao cortar um dedo ou a deslocar uma perna. Neste sentido, claro, isto é mesmo bem misterioso – mas não misterioso como o filósofo da compaixão considera ser. Pois bem, todas as manifestações complexas de piedade possuem um fundamento semelhante. Tudo o que existe, e em particular, todos os seres vivos estão conectados pelo fato de serem co-presentes ao mesmo mundo, e pela unidade de sua origem; tudo deriva de uma mesma mãe –a natureza, da qual somos uma parte; em lugar nenhum encontramos a “separação absoluta” da qual fala Schopenhauer. A conexão natural orgânica de todos os seres como parte de um todo é dada na experiência, e não é meramente uma ideia especulativa. Por isso a expressão psicológica daquela conexão –  a participação inerente do ser no sofrimento do outro, por compaixão ou piedade – pode ser entendida mesmo do ponto de vista  empírico como expressão de uma solidariedade natural e óbvia a tudo o que existe. Esta participação do ser em outro é mantida com o plano geral do universo, e está em harmonia com a razão ou com o perfeitamente racional. O que é sem sentido ou irracional é o estranhamento mútuo dos seres, sua subjetividade separada, isto é contraditório à sua unidade subjetiva. É seu egoísmo inerente e não sua simpatia entre as partes distintas da natureza o que é realmente misterioso e enigmático. A razão não pode dar conta disso, e o fundamento não é dado empiricamente.
A separação absoluta é meramente afirmada, mas não estabelecida pelo egoísmo; nada faz nem pode existir de fato. Por outro lado, a conexão mútua entre os seres que encontra sua expressão psicológica na simpatia ou piedade é certamente não a natureza da identificação imediata como Schopenhauer afirma ser.  Quando eu estou triste pelo meu amigo que tem uma dor de cabeça o sentimento de simpatia não é uma regra que se segue da dor de cabeça. Mesmo meu ser identificado com ele nossos estados permanecem distintos, eu distingo claramente a minha cabeça, que não tem dor, da dele, que possui. Também, no que sei, nunca aconteceu que um homem compassivo, que salta para a água para salvar outro do afogamento, deva tomar o outro como ele mesmo ou ele mesmo como o outro. Até mesmo uma galinha – uma criatura mais conhecida por seu instinto maternal do que por sua inteligência – entende claramente a distinção entre ela mesma e seus pintinhos, e, logo, se comporta com relação a eles de certa forma, que seria impossível se em sua compaixão maternal ‘a barreira entre o eu e o não eu fossem removidas’. Se este fosse o caso, a galinha poderia se confundir com seus pintinhos, e quando faminta, poderia atribuir essa mesma sensação aos seus pintinhos, e começar a alimentá-los, mesmo estando eles satisfeitos e ela faminta; ou, em outra vez, ela poderia alimentar a si mesma às expensas deles. Em verdade, em todos os casos reais de piedade, as barreiras entre o ser que se apieda e aqueles de quem tem pena não são removidos de todo; eles simplesmente provam não ser tão absolutos e impermeáveis como a reflexão abstrata dos filósofos escolásticos mostrariam.
Remover as barreiras entre o eu e o não eu ou a identificação imediata é meramente uma figura de linguagem e não expressão de um fato real. Como a vibração das cordas que soam em uníssono, assim os laços de compaixão entre os seres viventes não é simplesmente identidade, mas harmonia de similares. Deste ponto de vista, também, o fato moral fundamental da piedade ou compaixão corresponde completamente à natureza real das coisas ou ao significado do universo. Pois a unidade indissolúvel do mundo não é meramente uma unidade vazia, mas abraça todo o conjunto de variações determinadas.

V) 
Como convém a um princípio moral último, o sentimento de piedade não tem limites externos para sua aplicação. Começando com a esfera estreita do amor maternal, fortemente desenvolvido mesmo nos animais superiores, pode, no caso do homem, como que gradualmente tornar-se mais amplo, passar da família para o clã e a tribo, para  a comunidade civil, a nação inteira, para toda  a humanidade, e finalmente abraçar a todos os viventes. Nos casos individuais, quando confrontado com a dor atual ou a necessidade, nós podemos ativamente nos apiedar não apenas a todo homem – apesar de pertencerem a diferentes raças e religiões – mas a todo animal; isto está além da disputa e é, de fato, quase usual. Menos comum é tal sentimento de compaixão que sem qualquer razão óbvia, uma vez abraça um sentimento agudo de piedade toda a multidão de seres no universo. É difícil suspeitar da retórica universal ou do patos exagerado da seguinte descrição da piedade universal como um estado mental real –muito ao contrário do assim chamado ‘mundo da dor’ (Weltschmerz). “E eu pergunto o que é um coração compassivo? E eu respondi: o fulgor no coração do homem por toda a criação, pelos homens, pelos pássaros, pelos animais, pelos demônios, e por criaturas de todos os tipos. Quando ele pensa neles e os olha, seus olhos se enchem de lágrimas. Grande e aguda piedade o possui e seu coração é torcido pelo sofrimento, e ele não pode suportar ou ouvir ou ver qualquer dano ou sofrimento suportado por qualquer criatura. E por isso ele roga a toda hora com lágrimas mesmo pelas bestas estúpidas, e pelos inimigos da verdade e aqueles que cometem erro, a fim de que Deus possa preservá-los e ter misericórdia por eles; e por todo tipo de ser rastejante ele roga com grande piedade que sobe em seu coração para além de toda medida que assim ele se torna semelhante a Deus”. (Isaac, O Sírio. Orações Ascéticas, Edição Russa, pag. 299).
Nesta descrição do motivo altruísta fundamental em sua forma suprema nós encontramos nem “a identificação imediata” nem a remoção de barreiras entre o eu e o não eu. Isto difere da descrição de Schopenhauer, do mesmo modo que difere a verdade vivente da eloquência literária. Estas palavras dos escritores cristãos também provam que não é necessário, como Schopenhauer erradamente pensou, retornar ao drama indiano ou budista de modo a aprender a oração “possam todos os que vivem ser livres do sofrimento”.

VI)  

A consciência universal da humanidade decididamente pronuncia ser a piedade uma coisa boa. Uma pessoa que manifesta esse sentimento é chamada boa; quanto mais profundamente ela sente e quanto mais a compaixão age sobre ela, mais ela é considerada boa. Um homem sem piedade mais do que qualquer outro é chamado de perverso. Disso não se infere, porém, que toda a moralidade ou essência de todo bem possa ser reduzido, como ocorre frequentemente, à compaixão ou um "sentimento de simpatia".

"Compaixão sem limites por todos os seres viventes", observa Schopenhauer, "é a garantia mais certa da conduta moral e não requer nenhuma casuística. O homem que é cheio deste sentimento certamente não irá ferir ninguém, não causar sofrimento a qualquer um; todas as suas ações terá a certeza de ter o selo da verdade e da misericórdia. Deixar qualquer um dizer, 'Este homem é virtuoso, mas ele não conhece a compaixão', ou 'Ele é um homem injusto e perverso, mas ele é muito compassivo', e a contradição aparecerá de cara". (Die beiden Grundprobleme der Ethik , 2nd ed., p. 23). Estas palavras são apenas verdadeiras com reservas consideráveis. Não há dúvida que piedade ou compaixão seja uma base real da moralidade, mas o erro óbvio de Schopenhauer está em reconhecer tal sentimento como a única fundação de toda moralidade.

Em verdade ele é apenas um dos princípios últimos da moralidade e tem uma esfera definida de aplicação, a saber, ele determina nossa relação legítima com os outros seres no mundo. Piedade é a única fundamentação verdadeira para o altruísmo, mas altruísmo e moralidade não são idênticos: o primeiro é apenas uma parte do último. É verdade que "compaixão sem limites por todos os seres viventes é a garantia mais certa da conduta moral" não da ação moral em geral, como Schopenhauer erradamente afirma, mas da ação moral em relação a outros seres que são objeto de compaixão. Esta relação porém, importante como é, não exaure o todo da moralidade. Além da relação com seus companheiros, o homem também estabelece certa relação com sua natureza material e com os mais altos princípios de toda a existência, e estas relações também exigem ser moralmente determinadas para que o bem nelas possa ser distinguido do mal. Um homem que é cheio de piedade certamente não causará prejuízo ou sofrimento a quem quer que seja - isto é, ele não prejudicará quem quer que seja, mas ele pode muito bem se prejudicar entregando-se a paixões carnais que rebaixam sua dignidade humana. Alguém com o coração muito compassivo pode estar inclinado a libertinagem e a outros vícios baixos que, embora não se oponham à compaixão, se opõem à moralidade - e este fato basta para mostrar que ambos os conceitos não coincidem necessariamente. Schopenhauer acertadamente insiste que não se pode dizer, "Este homem é malicioso e injusto, mas é muito compassivo", curiosamente porém, ele esquece que pode-se dizer e com frequência se diz "este homem sensual e dissoluto - um perdulário, uma glutão e um bêbado - é também um homem de grande coração"; é igualmente familiar a frase, "ainda que viva uma vida ascética exemplar, ele é sem piedade para com seus próximos". Isto significa que, de um lado, a virtude da abstinência é possível pondo-se de lado a piedade, e de outro que, apesar de serem sentimentos simpaticamente desenvolvidos, piedade e benevolência conseguem excluir a possibilidade de ações más no sentido estrito do termo, isto é, ações cruéis que diretamente magoem aos outros, mas não conseguem por qualquer meio nos prevenir de atitudes vergonhosas. E tais ações não são moralmente indiferentes de um ponto de vista altruísta. Um tipo bêbado e perdulário pode ser contrito com outras pessoas e nunca desejar magoá-las, ainda que por este vício ele certamente prejudique não apenas a si mesmo com à sua família, que ele pode inclusive finalmente arruinar sem a intenção de lhes fazer mal. Se então a piedade não nos previne de tais condutas, nossa disposição interior deve ser fundada sob outro aspecto de nossa natureza moral, a saber, sob o sentimento de vergonha. As regras do asceticismo brotam deste sentimento (o de vergonha) no mesmo sentido que as regras do altruísmo se desenvolvem a partir do sentimento de piedade.

VII)
A verdadeira essência da piedade ou compaixão é certamente não a identificação imediata de alguém com outra pessoa, mas o reconhecimento da dignidade inerente daquele outro - o reconhecimento de seu direito à existência e ao seu possível bem estar. Quanto eu me apiedo de outro homem ou de um animal, eu não me confundo com ele ou o tomo por mim mesmo ou eu mesmo por ele. Eu simplesmente vejo nele uma criatura similar a mim, com uma consciência como a minha, e desejando, como eu, viver e aproveitar as coisas boas da vida. Ao admitir meu interesse próprio na realização de tal desejo, eu o admito com relação aos outros; sendo dolorosamente consciente de toda violação deste direito em relação a mim, de todo prejuízo com relação a mim mesmo, eu respondo desta maneira à violação dos direitos dos outros, aos prejuízos cometidos contra outrem. Apiedando-me de mim mesmo, eu me apiedo dos outros. Quando eu vejo uma criatura sofrendo eu não me identifico ou me confundo com ela, eu simplesmente me imagino em seu lugar e, admitindo sua semelhança a mim mesmo comparo seu estado ao meu próprio e como na frase "ponho-me em seu lugar". Esta equalização (mas não identificação) entre eu e o outro que imediatamente e inconscientemente substitui o sentimento de piedade, é levantada pela razão ao nível de uma ideia clara e distinta.

O conteúdo intelectual (a ideia) de piedade ou compaixão, tomada em sua universalidade, independentemente dos estados subjetivos mentais em que ela é manifestada - isto é, considerada logicamente e não psicologicamente, - é verdadeira e justa. É verdadeiro que outras criaturas são similares a mim, e é justo que eu deva sentir por elas o que eu sinto por mim mesmo. Esta posição, clara em si mesma, torna-se mais clara quando testada negativamente. Quando eu sou sem piedade ou indiferente aos outros, considero-me livre para prejudicá-los e não penso que é meu dever ajudá-los, eles aparecem para mim o que realmente são. Um ser aparece meramente como coisa, algo vivo aparece como morto, algo animado como inanimado, algo familiar como estrangeiro, algo semelhante a mim como se fosse completamente diferente. Quando um objeto é levado a não ser o que é, caímos numa negação direta da verdade; e as ações que seguem disso serão injustas. Logo as ações opostas que se expressam intrinsecamente pelo sentimento de simpatia, piedade ou compaixão serão justas. Medir as pessoas por diferentes pesos é reconhecido por todos um exemplo simples de injustiça; mas quando eu sou impiedoso com os outros, isto é, os trato como coisas sem alma e sem direitos, e me afirmo como um ser consciente plenamente possuidor de direitos, eu evidentemente as meço com diferentes medidas e cruelmente contradigo a verdade e a justiça. Pelo contrário, quando eu me apiedo dos outros como se fosse eu mesmo , eu os meço com uma medida e consequentemente ajo de acordo com a verdade e a justiça.

Na medida em que é um caráter constante e um princípio prático, impiedade é chamada de egoísmo. Em sua forma pura e não misturada não existe egoísmo consistente, pelo menos não entre humanos. Mas, de modo a entender a natureza geral do egoísmo enquanto tal, é necessário caracterizá-lo como um princípio puro e incondicional. Sua essência consiste nisso: uma oposição absoluta, um abismo intransponível é fixado entre o eu e  os outro seres. Eu sou tudo para mim e devo ser tudo para os outros, mas os outros são nada neles mesmos e se tornam algo apenas na medida em que me interessam. Minha vida e meu bem estar são um fim em si mesmos, a vida e o bem estar dos outros são apenas um meio para os meus fins, o meio ambiente necessário para a minha auto afirmação. Eu sou o centro e o mundo apenas uma circunferência. Tal ponto de vista é raramente apresentado, mas com alguma reserva é sem dúvida o que permanece na base de nossa vida natural. Egoístas absolutos não são encontrados na terra: seres humanos parecem sentir piedade pelo menos alguma vez na vida, cada ser humano vê uma criatura-companheiro pelo menos como uma pessoa. O egoísmo se manifesta mais claramente em esferas mais amplas do que em limites restritos - muito estreitos . Uma pessoa não toma atitudes egoístas com relação à sua própria família, isto é, ela inclui a sua família dentro de seu próprio eu, e se opõe sem piedade a tudo o que for externo ao seu eu ampliado. Uma pessoa que estende seu eu - quase superficialmente como uma regra - para incluir toda sua nação, adota o ponto de vista egoísta, com maior ardor, ao mesmo tempo para si e para toda sua nação, com relação a outras nações e raças, etc. O fato de um círculo de solidariedade inerente ser ampliado e o egoísmo ser transferido do individual para a família, a nação, e o estado é inquestionavelmente de maior significância para a vida da humanidade, pois ao determinado círculo ao menos o egoísmo está restringido, compensado ou mesmo completamente substituído pelas relações humanas e morais. Mas isto não destrói o princípio do egoísmo na humanidade, que consiste na absoluta oposição interior de si e do que lhe é próprio para o que lhe é diferente - fixando-lhes um abismo. Este princípio é essencialmente falso, pois na realidade não há, e não pode haver, qualquer abismo, qualquer oposição absoluta. É claro que exclusividade, egoísmo, falta de piedade é essencialmente a mesma coisa que inverdade. Egoísmo é em primeiro lugar fantástico e irreal, afirma o que pode ou não existir. Considerar-se  a si mesmo (tanto no sentido restrito, quanto no amplo) como o centro exclusivo do universo é no fundo tão absurdo quanto acreditar-se ser um assento de vidro ou a constelação da Ursa Maior.

Se, então, o egoísmo é condenado com razão como uma afirmação sem sentido do que é não existente e impossível, o seu princípio oposto, o altruísmo, é psicologicamente baseado no sentimento de piedade, é inteiramente justificado tanto pela razão quanto pela consciência. Em virtude deste princípio, a pessoa individual admite que outros seres são, assim como ele, centros relativos do ser e de força viva. Esta é uma afirmação da verdade, uma admissão do que verdadeiramente é. Esta verdade, mediante a qual o sentimento de piedade é despertado por outros seres semelhantes e iguais a nós, testemunha-se internamente em cada alma e por ela a razão deduz um princípio ou uma lei em relação a todos os outros  seres: Faça aos outros o que eles deveriam fazer com você. 

VIII)
A regra geral ou princípio do altruísmo naturalmente cai em dois princípios mais particulares. O início desta divisão pode já ser visto no sentimento altruísta fundamental da piedade. Se eu estou genuinamente me lamentando por uma pessoa, em primeiro lugar eu não lhe causarei prejuízo ou sofrimento, eu não lhe farei mal, e em segundo lugar, quando, independente de mim, ele sofre dor ou mal, eu me prontificarei a ajudá-lo. Disso segue duas regras  do altruísmo, uma negativa e uma positiva: 1) Não faça aos demais o que não gostaria que lhe fizessem; 2) Faça aos outros o que gostaria que lhe fizessem. De forma mais breve e simples, estas duas regras, que são usualmente postas juntas, são expressas da forma seguinte: Não prejudique a quem quer que seja, e ajude a todos na medida de suas capacidades.

A primeira regra, a negativa, é mais particularmente chamada de regra da justiça e a segunda a regra da misericórdia. Mas estas distinção não é lá muito correta, pois a segunda regra é também fundada sob a justiça: se eu quero que os outros me ajudem quando em necessidade, é justo que eu também os ajude. Por outro lado, se eu não desejo prejudicar quem quer que seja, é porque eu reconheço os outros como seres viventes e sencientes como eu; e neste caso, tanto quanto posso, salvo-os do sofrimento. Eu não os prejudico porque me apiedo deles, e como me apiedo, eu também irei ajudá-los. Misericórdia pressupõe justiça e justiça exige misericórdia - eles são meramente aspectos distintos ou distintas manifestações de uma única e mesma coisa. [ii]   

Há uma distinção real entre estes dois lados ou graus de altruísmo, mas não há, nem pode haver, qualquer oposição ou contradição. Não ajudar os outros significa prejudicá-los; um homem consistentemente justo fará obras de misericórdia, e um homem verdadeiramente misericordioso não pode ser injusto. O fato que as duas regras altruístas, a despeito de toda diferença entre elas, sejam inseparáveis, é muito importante como fornecendo a base para a conexão interna entre a justiça legal e a moralidade, e entre a vida política e a vida espiritual da comunidade.

A regra geral do altruísmo -"faça aos demais o que eles deveriam fazer com você" - não pressupõe uma igualdade material ou qualitativa de todos os indivíduos. Não existe tal igualdade na natureza, e seria insano exigi-la. Não é uma questão de igualdade, mas simplesmente de direito igual a existir e desenvolver as boas potencialidades de sua natureza. Um homem selvagem do mato tem tanto direito a existir e se desenvolver quanto São Francisco de Assis e Goethe tiveram. E nós devemos respeitar esse direito igualmente em todos os casos. O assassino de um selvagem é tão pecador quanto o assassino de um gênio ou de um santo. Mas isso não implica que eles sejam de igual valor em outros aspectos, ainda que devam ser tratados de igual forma quando se tem como escopo os direitos humanos universais. Igualdade material e logo igualdade de direitos não existe entre diferentes seres ou em um único e mesmo ser cujos direitos particulares e deveres mudam quando se muda de idade e posição; eles não são os mesmos nas crianças e nos adultos, nos doentes mentais e nos saudáveis. E ainda que os direitos humanos fundamentais ou universais de uma pessoa e seu valor moral como indivíduo permaneçam o mesmo. Nem é anulado pela infinita variedade e desigualdade entre pessoas, tribos e classes sociais. Em todas estas diferenças deve ser preservado alguma coisa idêntica e absoluta, a saber, a significância de cada pessoa ser um fim em si mesma, isto quer dizer, sua significância como alguma coisa que não pode ser meramente um meio para o fim dos outros.

As demandas lógicas do altruísmo são todas abrangentes, e a razão não mostra nenhum favor, nem conhece qualquer barreira; neste respeito ela coincide com o sentimento sob o qual o altruísmo é psicologicamente fundado. Piedade é, como vimos, também universal e imparcial, e por ela um homem pode ser 'feito semelhante a Deus'; pois sua compaixão igualmente abarca a todos, sem distinção - os bons e os 'inimigos da verdade', homens e demônios, e mesmo 'todo tipo de ser rastejante'. 


[i] Tal como na doutrina do Budismo ou na “filosofia da Vontade” de Schopenhauer.
[ii] Em hebreu sedeq significa 'justo', e o nome derivado dele, sedaqa, significa 'benevolência'.