sábado, 5 de outubro de 2013

Cristianismo e História

O texto abaixo faz parte do sexto capítulo da obra "El sentido de la História" de Nikolai Berdyaev, Madrid, Encontro Ediciones, 1979, páginas 54 a 62. Infelizmente, não conhecendo russo e não querendo postar o texto em espanhol o disponibilizo uma versão que fiz em português a partir da edição que tenho em espanhol. Espero que seja de alguma ajuda.



Cristianismo e História
Nikolai Berdyaev

Em um dos capítulos anteriores, falei longamente da relação privilegiada existente entre o cristianismo e a história, da historicidade do cristianismo, e nos referimos a Schelling, o qual em sua Vorlesungen über die Methode des akademischen Studiums expôs com particular força a ideia de que o cristianismo é revelação histórica através da história. Ao mesmo tempo, Schelling disse que o cristianismo é essencialmente dinâmico, não é estático, é uma força que irrompe na história e, portanto, se diferencia profundamente do mundo antigo que, dada sua tendência contemplativa, era fundamentalmente estático. Este dinamismo é tão intenso que até esteve presente nos casos em que havia apostasia. Em tais casos o dinamismo se expressava de outras formas, por exemplo, na forma de rebelião, de revolta contra o destino: revoltas tão violentas só aparecem no período em que já há cristianismo, pois tal dinamismo engendra por vezes algo que lhe é oposto e que é errado. Esta historicidade e dinamicidade excepcionais do cristianismo estão ligadas principalmente ao fato central da História Cristã (a aparição de Cristo), como sendo um fato único e irrepetível, que funda o caráter específico de todo o "histórico". De sua parte, toda a história universal caminha para este fato central e irrepetível. Este caráter único e irrepetível do "histórico", este nexo da história celestial com a terrena, tem no mundo cristão uma configuração histórica muito complexa, em que se refratam todas as forças fundamentais da história espiritual precedente. Nesta configuração se dá, sobretudo, a interação dos princípios judaico e helênico. Só o conflito e a interação de ambos os princípios explicam a aparição do cristianismo na história. Dentro do cristianismo aparecem alternadamente um ou outro. Cada um deles determina um aspecto do pluriforme e complexo mundo cristão. Os elementos judaicos são princípios veterotestamentários, legalistas e em certos momentos trouxeram como consequência a degeneração do cristianismo em um legalismo veterotestamentário; também podem dificultar a revelação da Graça, do amor e da liberdade e ser fonte de farisaísmo. Por outro lado, estes mesmos princípios podem dar origem a um espírito oposto, ao espírito apocalíptico, aberto a novas e mais perfeitas revelações. Este último espírito atua em um sentido totalmente oposto ao dos princípios veterotestamentários, mas ambos princípios judaicos são extremamente históricos, pois tanto é histórica a ação dos elementos legalistas que asseguram a tradição, como é também a ação dos elementos apocalípticos orientados para o futuro. Em geral, podemos dizer que a igreja cristã é, por sua própria natureza, fundamentalmente força histórica. Ela revelou isso na ordem histórica da humanidade e dirige (no plano religioso) os destinos das massas. A igreja é uma força impulsora da História na medida em que encerra em si os princípios judaicos, que são os fatores históricos por excelência. Por outra parte, os princípios helênicos não são menos dinâmicos que aqueles e são também um tesouro para o cristianismo. A ela está ligada, sobretudo, a vertente contemplativa do cristianismo. Toda a metafísica contemplativa, assim como a dogmática e mística cristãs se derivam do princípio helênico. Trata-se de elementos muito mais helênicos do que judaicos, pois a contemplação do ser divino é mais conforme ao espírito grego, enquanto o judaico prende-se ao vórtice da história. Além disso, toda estética e toda beleza estão ligadas aos elementos helênicos do cristianismo, porque o mundo helênico é o berço, a fonte da beleza presente no âmbito cristão, e no mundo em geral. Toda beleza cultural cristã amarra-se a isto e todas as tentativas protestantes de purificar o cristianismo do "paganismo" só serviram para debilitar a estética e a metafísica cristã, ou seja, tudo aquilo imbuído de espírito grego.

A historicidade e dinamicidade excepcionais do cristianismo estão ligadas ao fato de que ele revela (pela primeira vez e definitivamente) para o mundo, o princípio da liberdade espiritual, pressupondo que o verdadeiro sujeito da ação histórica é um sujeito livre, um espírito livre. Este pressuposto é essencial, tanto no que diz respeito à natureza do cristianismo quanto à natureza da história; se não admitimos esse sujeito que atua livremente e determina os destinos históricos da humanidade, não podemos falar propriamente de história.

Os gregos afirmavam a racionalidade e necessidade do bem; para eles isso era o resultado de uma vitória da razão. Sócrates foi o expoente desta concepção helênica. O bem é uma necessidade racional, suas leis se impõem à razão, e os princípios que se opõem a eles são irracionais. A concepção grega do bem não está ligada à liberdade. A concepção grega nunca chegou a formular uma concepção exata e verdadeira do bem, nem mesmo por meio de seus pensadores mais excelsos. O cristianismo, no entanto, afirma que o bem é livre, que é produto da liberdade do espírito, só tem valor real e é verdadeiramente bom o que procede de uma opção livre do espírito. É por isso que o cristianismo rejeitou a concepção do bem como algo racional e necessário, e esta é a marca registrada da Weltanschauung cristã. O cristianismo não só afirma a liberdade como conquista suprema e vitória da razão divina, senão que também afirma outra liberdade que condiciona o destino do homem e da humanidade e faz história.No cristianismo a própria Providência e sua ação são gratuitas, não tem nada a ver com o fatum. A Mentalidade Cristã se rebela contra aquela submissão ao fatum, típica do mundo antigo. A tragédia e a filosofia gregas proclamam esta submissão que, para elas, é a máxima sabedoria que pode alcançar o homem. Por outro lado, no cristianismo não é um princípio que se levanta contra essa submissão ao destino, mas a liberdade de escolha, a liberdade de afirmar o bem, localizadas nos arcanos da vontade e não da razão, pressupondo a liberdade do sujeito criador, do sujeito agente, sem o qual é impossível um verdadeiro dinamismo histórico. A ahistoricidade ou antihistoricidade da antiga cultura hindu e chinesa se explicam na medida em que ali não se chegou a descobrir-se a liberdade do sujeito criador. Nem se descobriu isso na filosofia dos vedas, que é um dos sistemas filosóficos mais importantes, nem a descobriram tampouco os filósofos que, em certo modo, afirmaram a liberdade entendida como confluência e identidade absolutas entre o espírito humano e o divino. A Índia não conheceu a liberdade do espírito humano e isto explica a insuficiente historicidade desta cultura singular. Foi o cristianismo o que pôs de manifesto (pela primeira vez e de modo definitivo) esta liberdade do sujeito criador, desconhecida no mundo pré cristão. Este descobrimento cristão dos princípios dinâmicos interiores da história, da evolução do destino do homem, do povo e da humanidade, criou, definitivamente a impetuosa história da época cristã, da qual a história anterior do cristianismo constituiu apenas um prelúdio e preparação.

Qual é o tema originário da História Universal? A nosso entender, o tema fundamental é o destino do homem, abordado através da interação entre o espírito humano e a natureza. Esta interação, esta ação do espírito humano sobre a natureza, sobre o cosmo, é também o fundamento primordial e o princípio originário do histórico. Ao longo da história da humanidade, contemplamos diversas formas de interação entre o espírito humano e a natureza global, formas que passam por diferentes períodos históricos. O estado primordial da história, resultado imediato do drama celeste-histórico através do qual o homem se separou de Deus, do drama do pecado original (que é, em definitivo, o drama da liberdade), afundou o espírito humano nas entranhas da necessidade natural. Desta forma, teve lugar a queda do homem no seio da Natureza, seu aprisionamento aos elementos que seduziram o homem e dos quais não podia evadir-se por suas próprias forças, pois era impossível quebrar o terrível feitiço que o submetia à necessidade natural. O estado primordial, característico de todos os povos bárbaros e selvagens, das mais antigas culturas e da história primordial do mundo antigo, se explica sempre a partir dessa imersão do espírito humano nos elementos da Natureza. O espírito humano perdeu sua liberdade originária e deixou de ser consciente disso. Imerso nas entranhas da necessidade, sua consciência filosófica não consegue ascender até a autoconsciência da liberdade, até a autoconsciência de si, como sujeito espiritual criador. Isso explica que o mundo antigo não conheceu a autêntica liberdade, pois o espírito humano, assombrado pelos elementos da natureza, havia perdido sua liberdade como consequência de seu afastamento primordial do Espírito de Deus. Aconteceu então uma espécie de degeneração: a liberdade degenerou-se em necessidade, o espírito não pode elevar-se até a revelação religiosa da liberdade ou o conhecimento filosófico da mesma. O tema do destino  histórico universal do homem é o tema da libertação do espírito humano criador das entranhas da terra, da necessidade natural, desta dependência e submissão da natureza. Tudo está ligado a esta abordagem e a solução deste problema tanto na Grécia como em geral todo o mundo antigo pagão. Esta imersão do espírito humano nos elementos da Natureza comportava no homem uma situação de amarga dependência e um terror espantoso com relação aos demônios da Natureza; o espírito humano, degradado e imerso na vida da Natureza, estava sujeito a ela, ao mesmo tempo, vivia em conexão com ela. A vida espiritual da Natureza se manifestava em estados sucessivos, e ele a sentia como a vida de um organismo vivente, espiritualizado, habitado por demônios, com os quais ele estava em permanente comunhão. As antigas mitologias nos falam deste vínculo com os espíritos da Natureza. Por esta  razão, todos os mitos antigos foram gerados através dessa interação entre o homem e a Natureza. O espírito humano decaído não se tornou senhor da Natureza, senão que, pelo contrário, através de uma volição livre, realizada no plano pré mundano, tornou-se escravo da Natureza e parte indissociável desta. Esta escravidão, esta dependência da Natureza, próprias dos primeiros estados da Natureza Humana, foram expressos na fórmula de um vínculo com a Natureza. O mundo pagão estava cheio de demônios e o homem não tinha forças para elevar-se acima destes demônios, deste turbilhão da Natureza. A imagem do homem se assemelha não à Natureza divina superior, senão à Natureza inferior, pululante, dos espíritos elementares. O homem tomou o tom da Natureza inferior em que havia caído, a que estava submetido, e não podia libertar-se por suas próprias forças. A obra sublime do cristianismo (que todavia não é reconhecida suficientemente no seio do mundo cristão) foi a de libertar o homem dos poderes demoníacos através da vinda de Cristo ao mundo, do drama da redenção do homem e do mundo. O cristianismo libertou quase à força o homem desta submissão à Natureza e o pôs novamente de pé no plano espiritual, restaurou sua condição de ser espiritual autônomo, o liberou desta sujeição a todo universal natural, o dignificou e o elevou até o céu. Só o cristianismo restituiu ao homem a liberdade espiritual da qual havia sido privado enquanto estava em poder dos demônios, dos espíritos da Natureza e das forças elementares, como ocorreu no mundo pré cristão. Para nós a essência do cristianismo está na libertação do homem, na possibilidade dada ao homem de realizar o seu destino; aqui reside o enorme significado da redenção interna e externa, da libertação dos elementos perversos que operam no mais íntimo de cada natureza. A sujeição do homem aos elementos da Natureza era, ao mesmo tempo, uma sujeição a si mesmo, aos seus elementos inferiores. O homem não podia libertar-se por si mesmo desta servidão, através da qual a liberdade havia degenerado em necessidade; por sua culpa havia debilitado o poder de sua liberdade. A redenção cristã, a vinda do homem divino, do Deus-homem, do homem como segunda pessoa da Trindade Divina, restitui-lhe o poder de liberdade, devolve ao homem a marca de sua origem divina, limpa a sua imagem da marca da escravidão, da submissão à Natureza inferior. Só a aparição do homem divino, só a aceitação de sua parte de todas as consequências do mal operado pelo homem no mundo, sua paixão e morte, seu sangue redentor, em definitivo, o drama sagrado da redenção, restitui ao homem a liberdade, o liberta dos elementos inferiores e o devolve amplamente à filiação divina perdida. Também as religiões antigas buscavam a redenção e pode dizer-se que, em todos os mistérios antigos estava presente o arquétipo da redenção cristã. Os mistérios de Osíris, Adônis, Dionísio, só representavam pressentimentos obscuros e uma sede ardente do mistério genuíno da redenção. A esses mistérios o homem anelava apaixonadamente libertar-se da escravidão da Natureza, conquistar a imortalidade, subtrair-se ao poder de espíritos inferiores; mas os mistérios do mundo antigo nunca conseguiram a libertação definitiva do homem, pois estavam imersos no tumulto da Natureza dos elementos inferiores.

Eram mistérios imanentes, naturais, nos quais o homem buscava a libertação das amarguras da existência através da mera comunhão com os elementos naturais. Assim os mistérios dionisíacos se celebravam de acordo com o próprio ciclo da natureza, da morte e do nascimento, do inverno e da primavera; mas estes mistérios não elevavam os homens acima dos elementos naturais, nem outorgavam uma autêntica redenção. O mundo antigo, no qual eram conhecidos estes mistérios, anelava ardentemente a libertação e, nos últimos dias, estava mais obcecado do que nunca pelo horror aos demônios da Natureza. Este terror característico dos últimos tempos do mundo antigo no qual se intensificaram e multiplicaram os cultos místicos em todos os lugares, alcançaram enorme dimensão e se tornaram verdadeiramente insuportáveis. A vida das pessoas que desejavam libertar-se desse terror e  alcançar a redenção se tornou verdadeiramente trágica. Só o cristianismo libertou o homem deste turbilhão dos elementos naturais, lhes devolveu seu lugar no mundo, restituiu a liberdade ao espírito humano e abriu um novo período no destino humano, um período em que este destino começa a ser definido e realizado por um sujeito autenticamente livre, um período em que o homem se torna consciente de sua liberdade. 

Este processo de libertação dos elementos da natureza tem a sua contrapartida, a qual chamam com amargura "a morte do grande Pan". O fim do mundo antigo e o começo do cristianismo comportam efetivamente um distanciamento do homem da vida íntima e profunda da Natureza. O grande Pan, que se manifestava no mundo antigo e estava próximo ao homem daquela época (imerso nas entranhas da natureza) afunda no seio da Natureza e está escondido dos olhares. Se abre um abismo entre o homem que empreende o caminho da redenção e a Natureza. O cristianismo fecha hermeticamente a vida íntima da Natureza, não deixa ao homem aproximar-se dela e de certo modo A humilha; este é outro aspecto da grande obra de libertação do espírito humano levada  a cabo pelo cristianismo. Para que o espírito humano não fosse escravo da Natureza teve de bloquear seu acesso a essa vida interior dos espíritos da Natureza. Qualquer retorno do homem à condição do paganismo antigo seria perigosa, levaria consigo o risco de uma nova queda e desembocaria outra vez no terror aos demônios da Natureza; todos estes riscos são reais até que o homem não tenha alcançado certa estatura espiritual, até que não tenha levado a cabo o drama da redenção, até que o homem não seja espiritualmente adulto, e adquira suficiente equilíbrio e firmeza. O cristianismo realizou o processo de libertação do espírito humano separando-o da vida interior da Natureza e a Natureza continuou imersa naquele mundo pagão do qual era necessário distanciar-se. Tudo isso se prolongou durante quase toda  a Idade Média. A vida interior da Natureza aterrorizava o homem, a relação com os espíritos da Natureza era considerada magia negra, o cristão seguia tendo uma atitude de temor diante dela, ao que considerava um cordão umbilical que o atava ao paganismo. O cristianismo trouxe a boa nova da libertação deste terror e desta servidão, declarou uma guerra  implacável, apaixonada, heroica contra a Natureza, dentro e fora do homem, uma guerra ascética que se manifestou sobretudo na impressionante personalidade dos santos. Este virar as costas à Natureza , esta perda das chaves de acesso à sua vida íntima, é uma característica fundamental do período cristão da história que o diferencia da época pré cristã. As consequências de tudo isso são, à primeira vista, paradoxais. O resultado e a consequência do período cristão é uma mecanização da Natureza ainda que, para todo o mundo pagão e para a cultura do mundo antigo, a Natureza fosse um organismo vivo. Para a época cristã a Natureza foi desde sempre terrível, horripilante e suscitava uma sensação de perigo. Isto explica porque o conhecimento da Natureza era tido como algo perigoso, assim como se incentivava a atitude de fuga dela, e a luta espiritual contra ela. Mais tarde, no alvorecer da era moderna, começou a ação técnica exercida sobre a Natureza, a mecanização começou a partir disso, condicionada por uma concepção da  Natureza como algo inerte e não como um organismo vivo. Esta mecanização constitui o segundo ou terceiro resultado da libertação do homem da demonolatria por parte do cristianismo. Este mecanizou a natureza para restituir ao homem a liberdade, para discipliná-lo, para distingui-lo dela e elevá-lo acima dela. Por mais paradoxal que isso pareça, parece-nos claro que isso permitiu uma técnica, justamente em ambientes cristãos. Se o homem está em interação imediata com os espíritos da Natureza e baseia sua vida numa Weltanschauung mitológica, ele não pode transcender a Natureza através de uma atitude cognitiva própria das ciências naturais e da técnica. Se há uma atitude de medo com respeito aos demônios da Natureza não é possível construir-se estradas, instalar telégrafos e linhas telefônicas. Para se trabalhar a Natureza como um mecanismo foi preciso desaparecer da vida humana a sensação de que a Natureza é um imenso organismo vivo cheio de demônios com os quais se pode conectar. A concepção mecanicista do mundo rebelou-se contra o Cristianismo, mas na verdade ela é o resultado espiritual da libertação do homem do jugo dos elementos e demônios da Natureza objetivado pelo Cristianismo. Na medida em que o homem estava imerso na Natureza e estava em comunhão com a vida íntima desta era impossível conhecê-la e dominá-la através da técnica. Isto teve uma influência decisiva sobre o destino humano. O cristianismo libertou o homem do jugo da Natureza, situando-o espiritualmente no centro do universo. O sentimento antropocêntrico da existência era alheio ao homem antigo, pois este sentia que formava parte da Natureza e era inseparável dela. Foi precisamente o cristianismo que trouxe essa sensibilidade  antropocêntrica, a qual se converteu na força motriz fundamental dos novos tempos. Uma vez que essa consciência surgiu da situação central do homem no mundo, situando-o acima da Natureza e tem sua origem no cristianismo, a história não podia tomar outros caminhos diferentes dos que seguiu. Os adversários recentes do cristianismo não são suficientemente conscientes de sua dependência dessa  fonte cristã.

A libertação do homem do jugo da Natureza tinha de levar o homem a se isolar no mundo espiritual interior para ali levar a cabo um combate gigantesco e heroico contra os elementos da Natureza, a fim de superar a escravidão em que vivia com respeito à Natureza inferior e modelar uma personalidade autenticamente livre e humana. Este grande empreendimento, que é fundamental para o destino do homem , foi conduzido pelos santos cristãos. Os grandes ascetas e anacoretas desenvolveram uma luta titânica contra as paixões do mundo e desta forma, levaram a termo o empreendimento de libertar o homem dos elementos inferiores. O homem tinha de volver a espada contra a Natureza para poder forjar uma personalidade humana nova, ligada à aparição do novo Adão já que no mundo antigo prevalecia a imagem do velho Adão, daquele Adão  que através de um ato pré mundano e de dimensão universal havia caído enquanto entidade coletiva no poder da Natureza inferior e de seus elementos. A nova personalidade humana havia de modelar-se conforme o novo Adão, livre de toda servidão aos poderes mortíferos do mundo e aos demônios da natureza inferior. Este trabalho de modelagem do novo Adão abre o período cristão da História, que começa com os primeiros eremitas, continua através do monaquismo medieval e se prolonga ao longo de todos os séculos  que participaram dessa luta incrível na formação da nova personalidade humana. O cristianismo reconheceu pela primeira vez o valor infinito da alma humana, trazendo a consciência de que a alma humana vale mais do que todos os reinos do mundo, pois "de que vale o homem ganhar o mundo todo se vier a perder a sua alma?". Este é um dos fundamentos da doutrina evangélica. A luta contra os elementos da Natureza se converteu em algo fundamental e criou o dualismo cristão entre espírito e natureza. Não se trata aqui de um dualismo ontológico mas de um princípio extraordinariamente dinâmico e ativo. Sem este dualismo, sem esta contraposição entre sujeito agente e o ambiente natural objetivo exterior a ele, com o qual luta e se encontra em conflito, é impossível o dualismo na história. Quando o sujeito está imerso no objeto não estão presentes condições adequadas para uma história verdadeiramente dinâmica.
O destino do mundo antigo antes do advento do cristianismo, tinha que ter um duplo ponto de chegada, dois momentos distintos, cada um dos quais era essencial para construir a História Universal e começar a nova era. O mundo antigo recolhia o mundo em uma unidade, superando todo particularismo. A divisão em Oriente e Ocidente, em numerosos povos e culturas, devia desembocar finalmente em uma integração, na formação de um grande todo universal, espiritual e material. Neste processo de integração teve uma influência decisiva a obra de Alexandre da Macedônia, destinada a promover a união entre Oriente e Ocidente. A integração espiritual começou a tomar forma durante o período helenístico, quando houve a confluência de todas as religiões do Oriente e do Ocidente, período caracterizado por um sincretismo em que se fundiram todos os modelos culturais elaborados pelo mundo antigo. A formação do Império Romano, que teve características de um estado universal, foi o resultado da integração do mundo antigo, o que possibilitou uma história verdadeiramente universal. A história universal da humanidade unificada começa neste período, no qual tem lugar a união entre Oriente e Ocidente. O cristianismo surgiu historicamente e se manifestou neste período em que aconteceu o encontro ecumênico de todas as conquistas culturais do mundo antigo, em que se efetua o contato entre culturas orientais e ocidentais, na qual a cultura helênica e as do oriente passam pelo prisma da cultura romana. Esta unificação do mundo antigo, este sincretismo helenístico, ajudou a criar uma humanidade única, que não tinha sido capaz de forjar antigo espírito hebraico apesar dele ser o berço do Cristianismo. Todo o mundo antigo adoecia de particularismo. O ecumenismo do cristianismo como processo natural da humanidade foi precedido por esta unificação do Oriente e do Ocidente realizada pela cultura helenística e o império romano. O cristianismo nasceu em um povo insignificante, que de modo algum ocupava um posto central na História e em certo momento o que estava em primeiro plano foi o que aconteceu em Roma e depois em Alexandria. Na palestina particularista e isolada ocorreu o fato mais importante da História Universal e que depois haveria de ser reconhecido como central, e não só por cristãos. O que aconteceu em Belém condicionou toda a história universal. Enquanto que em Roma, no Egito e na Grécia se constituía uma unidade universal de povos e culturas, que foram integrados na comunidade ecumênica, em um ponto da Terra aparentemente marginal teve lugar a comunicação suprema do divino, a revelação suprema e a reunificação global de todos os processos que a história antiga fez confluir em um único fluxo universal. Assim foi constituído o novo mundo cristão e começou uma história de dimensões autenticamente universais que era desconhecida do mundo antigo. Este é um dos resultados.
Quanto ao segundo, extraordinariamente estranho e trágico, consistiu no seguinte: o mundo antigo não só havia de chegar a formar um todo através de um processo de integração, mas também teve de entrar em colapso, isto é, tinha que acontecer a ruína do mundo antigo e do paganismo. A grandiosa cultura ligada ao mundo helênico desabou, da mesma maneira que caiu o Estado Romano, o maior do mundo. Esta queda aconteceu uma vez atingido o ecumenismo. O mundo antigo atingiu o seu esplendor enquanto se moveu dentro de seus limites particularistas, fechados ao universal e desmoronou justamente quando se tornou universal, quando se formou o estado universal, quando prosperou a refinada cultura helenística. A nosso entender este é um dos fatos mais centrais da História do Mundo, um fato que nos faz refletir como nenhum outro sobre a natureza do processo histórico e nos faz revisar muitas teorias sobre o progresso. Esta ruína do mundo antigo não teve nada  de casual. Não podemos buscar sua causa apenas nas invasões dos povos bárbaros que destruíram os valores do mundo antigo e inauguraram um período de barbárie, senão também em um certo mal estar interior (que os historiadores se inclinam cada vez mais a admitir) o qual contribuiu para corroer essa cultura em suas próprias raízes e tornou inevitável seu desmoronamento justamente no momento do seu máximo esplendor externo. A queda de Roma do mundo antigo nos ensina duas coisas absolutamente opostas. Nos diz que é inerente à cultura a instabilidade e a fraqueza de todas as coisas e conquistas terrenas, nos recorda uma verdade, a saber, que do ponto de vista da eternidade e do destino eterno, todas as conquistas da cultura terrena (inclusive em sua maior glória e esplendor) são corruptíveis e encerram em si o germe de uma enfermidade mortal; mas, ao mesmo tempo, esta queda, à luz da história de nosso tempo, não só nos ensina que a cultura é mortal, que está submetida ao ciclo do nascimento, da prosperidade e da morte, senão também que a cultura é um princípio de eternidade. Com efeito, é realmente surpreendente o fato de que este grandioso mundo antigo entrasse em colapso e chegasse o tempo da barbárie (que se prolonga ao longo dos séculos VII, VIII e IX), mas não é menos incrível o fato de que a cultura sobreviva ao tempo. Ela penetrou profundamente na vida da Igreja Cristã e não só a cultura helênica que nela penetra com sua arte, filosofia e conquistas; também é influenciada pela cultura romana a qual se acha tão profundamente unida a Igreja Católica. A queda de Roma e do mundo antigo não só representam uma morte, senão uma catástrofe; tudo estava desmoronado na superfície, mas no mais profundo, o princípio último da cultura antiga sobreviveu através dos séculos. O direito romano é algo eternamente vivo; a arte, a filosofia grega e os demais princípios do mundo antigo que formam a base de nossa cultura una e eterna (embora sujeitas a um processo desenvolvido em diferentes fases) são uma realidade permanentemente viva. A ruína do mundo antigo nos ensina, antes de tudo, que as teorias baseadas no progresso linear não possuem qualquer valor; elas não resistem a um escrutínio sério, pois o progresso contínuo não existe. Todos os acontecimentos fundamentais da história desmentem claramente esta teoria. Eduard Meyer, um dos historiadores mais importantes que se ocuparam do mundo antigo, opina que todas as culturas passam por períodos de desenvolvimento, de florescimento culminante, decadência e ruína. Em última análise ele pensa nas antigas culturas grandiosas do mundo que, em comparação a elas, as épocas sucessivas representam apenas uma volta ao passado: por exemplo, a antiga cultura babilônica era tão perfeita que, em muitos aspectos não tem nada a invejar de nossa cultura contemporânea do século XX. Tudo isso parece essencial para uma filosofia da história. Na Grécia houve uma época "iluminada" que se emendou com a crítica destrutiva dos sofistas e que é análoga à época da ilustração que se desenvolve no século XVIII. De acordo com a teoria do progresso linear essa época ilustrada teria de ter triunfado mas ao invés disso vemos que tal época sucede na Grécia a grande reação idealista e mística que se remonta a Sócrates e a Platão. Esta grande reação espiritual contra a "ilustração" racionalista e cética se prolonga ao longo de todo o medievo, ocupa um enorme período histórico de mais de mil anos, e refuta claramente a teoria ilustrada do progresso contínuo. Tudo isso é incompreensível de um ponto de vista ilustrado-progressista. Por que houve no mundo uma reação tão demoradamente longa? Muitos historiadores que se ocuparam com a Grécia, por exemplo, Belloch, sentem antipatia por esta corrente espiritual e vêem nela um movimento reacionário que começa com Platão e continua até o Renascimento. Mas, em suma, por que a evolução ilustrada não continuou? Isso representa um problema muito importante para a filosofia da História.


O cristianismo surgiu durante o florescimento tardio e do refinamento da cultura antiga próprios à época grega. Não tem sentido buscar no cristianismo a ingenuidade característica da religião e do homem da antiguidade. O cristianismo se revela em um período de refinamento cultural e, para nosso conhecimento, este é um dos fatores mais importantes a fim de definirmos as características peculiares do cristianismo. Em si mesmo, o cristianismo não é uma religião naturalista. Se fizéssemos uma classificação das religiões, o cristianismo haveria de definir-se como uma religião não naturalista, o naturalismo entendido como ligado à Natureza e a seus processos misteriosos que se refletem de modo orgânico na alma, senão preferencialmente a uma religião histórico-cultural, na qual o mistério da vida e da divindade se revela através do dualismo da alma separada de toda ingenuidade e de todo nexo com a Natureza. Isto é essencial para definir o cristianismo. Nesta religião tem lugar o encontro e a integração de duas correntes da História Universal e, ao mesmo tempo, se resolve de um modo novo um dos temas centrais e fundamentais da história do mundo, o tema das relações entre Oriente e Ocidente. O cristianismo é o encontro e a fusão das forças espirituais orientais e ocidentais e resulta impossível pensá-lo de outro modo. É a única religião universal que, apesar de ter seu berço imediato no Oriente é antes de tudo uma religião ocidental e reflete em si todas as propriedades específicas do Ocidente. O cristianismo surge quando se vai formando uma humanidade única através do império romano e da cultura helenista, quando Oriente e Ocidente se unem definitivamente. Por isso o cristianismo leva em si o percurso histórico universal sem o qual é impossível uma filosofia da História. Ele oferece o curso da unidade da humanidade e da unidade da Providência divina agindo sobre os destinos históricos na medida em que a nova religião nasce com base na confluência entre Oriente e Ocidente. E o cristianismo transfere o centro de gravidade da história do Oriente para o Ocidente, é o ponto de intersecção dos movimentos globais, indo de leste para oeste , seguindo o caminho do sol, e arrasta consigo a história universal. Isso se desloca definitivamente do Oriente ao Ocidente e os povos do Oriente que haviam escrito as primeiras páginas da História da Humanidade, haviam criado as primeiras grandes culturas, e haviam sido o berço de todas as grandes religiões e culturas, deixam de certo modo o palco da História Universal. O Oriente torna-se cada vez mais estático e a força dinâmica da história é transferida totalmente ao Ocidente. O cristianismo introduz dinamismo na vida dos povos ocidentais. O Oriente se fecha em si mesmo e abandona a arena da História Universal; na medida em que permanece não cristão, perde o contato com a História Universal. Os povos orientais que não aceitam o cristianismo não entram para a corrente da História. Isto confirma mais uma vez e de modo experimental que o cristianismo é a força dinâmica mais importante e que os povos que abandonam o cristianismo e, definitivamente, não o seguem, param de ter história. Isso não significa que o Oriente morreu e nele a vida tornou-se impossível. Em vez disso estamos inclinados a pensar que os povos do Oriente podem retornar ao fluxo da História e realizar dimensões verdadeiramente universais.  A guerra global cujas consequências sofrem pode contribuir para introduzir os povos do Oriente em um novo fluxo da história universal e, talvez, mais uma vez, conduzir à reunificação do Oriente e do Ocidente para além dos limites da cultura européia e , desta forma vivermos algo como um novo 'período helenístico'. Mas o que se refere ao passado, temos que dizer que o Oriente, a partir de certo momento, deixa de ser a força impulsora da História. Quando dizemos Oriente não queremos dizer a Rússia, pois esta não pertence propriamente ao Oriente Genuíno, sendo melhor definida como um agregado sui generis de Oriente e Ocidente. Isto origina a complexidade de seu destino histórico, mas, ao mesmo tempo, outorga ao destino histórico da Rússia um caráter diferente do destino cristão dos povos do Oriente.

Falamos da libertação do homem das entranhas da Natureza, da personalidade humana, do homem como imagem e semelhança de Deus, da submissão primordial do homem aos elementos inferiores da Natureza tal como existia no período pré cristão da História; tudo isso nos leva a concluir que o cristianismo foi o primeiro a abordar conscientemente o problema da pessoa humana, porque só ele abordou a questão de seu destino eterno. Uma abordagem genuína da questão do destino da pessoa humana era impossível e inacessível para o mundo pagão antigo e para o mundo hebreu. O cristianismo reconhece que a natureza humana é espiritual em sua própria origem e que não é possível derivar a pessoa de qualquer raça inferior ou de qualquer contexto não humano. O cristianismo estabelece um vínculo direto entre pessoalidade e a natureza divina (de onde vem a sua origem) e por isso é completamente avesso à concepção naturalista-evolucionista do homem. Enquanto o evolucionismo naturalista considera o homem como um filho do mundo e da natureza e nega a primogenitura espiritual do homem, sua origem superior aristocrática, o cristianismo afirma a originalidade da natureza humana e sua independência em relação aos processos que ocorrem nos elementos inferiores. Isso torna possível, pela primeira vez, a consciência da dignidade superior da pessoa humana. Só no período cristão da História se leva a cabo uma verdadeira elaboração histórica da personalidade humana. Em nosso modo de ver, a personalidade humana foi forjada e reforçada naquele período da história que foi considerado (a partir de um ponto de vista humanista) como desfavorável para a personalidade: a Idade Média. A Idade Média, na época do seu auge, adquiriu solidez e disciplina de duas maneiras distintas: através do monaquismo e da cavalaria. O monge e o cavaleiro foram justamente os modelos do que deve ser uma personalidade verdadeiramente humana, neles a personalidade humana adquiriu uma certificação superior. A pessoa se fortaleceu tanto física quanto espiritualmente e tornou-se independente de forças elementares que pudessem desagregá-la. Neste sentido, não se presta devida atenção para a grande importância que teve na Idade Média a finalidade de se forjar o homem , que, com extraordinária energia, foi erguido em toda sua altura e através de uma atitude criativa, proclamou os seus direitos durante o Renascimento. É necessário enfatizar a importância da Idade Média, que robusteceu a liberdade humana trazendo todas as forças espirituais da personalidade do homem forjado através de modelos do monge e do cavaleiro. Toda a ascética cristã se caracteriza por esta concentração e uso adequado das energias espirituais. As energias espirituais do homem foram reunidas e concentradas interiormente e embora não tivessem a possibilidade de manifestar-se e de florescer com suficiente liberdade, ao menos se conservaram nesse estado de concentração. Aqui temos um dos resultados mais notáveis (e, por outro lado, inesperado) da história medieval. O florescimento criador do Renascimento, bem notório, tornou-se possível na medida em que fora interiormente preparado pela Idade Média. Se o homem não tivesse frequentado a escola ascética que favorecia a economia das energias espirituais, não teria entrado no Renascimento com tanta ousadia e força criadora. Aqui radica o contraste essencial entre o Medievo e a era Moderna. Se o europeu sai hoje da época moderna esgotado e carente de energia, ele saiu da Idade Média com um imenso fluxo de energias virginalmente intactas e disciplinadas na escola da ascética. O tipo do monge e do cavaleiro precedem o Renascimento e sem eles a personalidade humana jamais poderia ter alcançado uma estatura conveniente. 

Agora, como o fim da Idade Média levou ao nascimento de uma nova era histórica, o Renascimento e o Humanismo, isso nos dá a entender que a era medieval não soube responder as questões que ela própria levantou, que a ideia medieval do Reino de Deus não havia sido realizada e que este fracasso levou o homem do Renascimento e do Humanismo a uma atitude  de rebeldia. A importantíssima realização do medievo não só consiste em haver manifestado sua ideia, senão também em ter descoberto suas contradições internas e seu caráter irrealizável. Era necessário que a Idade Média chegasse a este fracasso; a teocracia não foi realizada e tampouco podia ser implantada pela força. O resultado positivo do medievo foi o de reunir as forças espirituais do homem com vistas a criar uma nova história e não de alcançar  as metas que se havia proposto. Ademais, é bastante frequente que o resultado de um movimento histórico seja completamente distinto daquele que foi planejado por seus criadores. Assim, por exemplo, o resultado mais importante do processo de formação do Império Romano não foi o império em si, que desabou e quedou em ruínas, senão a unificação da humanidade, que constituiu o fundamento da Igreja Cristã Universal. Em nosso entender, o resultado positivo do medievo foi o de haver forjado a personalidade do homem para o período histórico seguinte, tudo isso prescindindo dos propósitos e intenções dos homens medievais, os quais pensavam na teocracia ou no feudalismo (que fracassaram de igual maneira) ou nas formas passageiras da cavalaria que foram varridas pela história moderna (não confundir-se aqui com o cavalheirismo espiritual, de ordem eterna). De todos os modos, no mesmo marco da Idade Média, nos séculos XIII e XIV, já nos encontramos com o Renascimento Cristão em seu retorno à formas antigas; e a escolástica medieval representou na filosofia a vitória de padrões antigos e Dante constitui o apogeu deste avivamento.