domingo, 29 de setembro de 2013

A antropologia dos Pais [da Igreja]

O texto a seguir é o capítulo IV do livro de Paul Evdokimov "El conocimento de Dios en la tradición oriental",Madrid, Ediciones Paulinas, (ano da edição ?), famoso teólogo ortodoxo russo, nascido em 1901 e que faleceu em 1970.
Esse texto representa boa introdução à antropologia teológica da Igreja Ortodoxa. Espero que apreciem.


A antropologia dos Pais
(Paul Evdokimov)

1) A dimensão transcendente da existência humana


São Fócio, patriarca de Constantinopla, transmite bem a inspiração da tradição patrística de advertir que está em sua própria estrutura o homem abordar "o enigma da teologia". Criado à imagem de Deus, o homem torna-se uma teologia viva em "lugar teológico" por excelência.
Os pais definem o tipo humano partindo da Imago Dei, do divino arquétipo: com este elemento divino da natureza humana estruturam a essência do homem. Assim a antropologia alcança o nível de uma teologia do homem. Esta, em sua amplitude, se remonta até o estado anterior ao pecado original. Mesmo após a queda, o estado edênico, o primeiro destino não pesa menos sobre o destino terrestre e a vocação do homem. A escatologia é uma dimensão do tempo inerente à história; ela permite o conhecimento místico das primeiras e últimas coisas e, portanto, pressupõe certa imanência do paraíso e do reino de Deus. "O reino de Deus está próximo, está no meio de vós", diz o Evangelho. O paraíso se fez novamente acessível ao homem, diz São Gregório de Nissa. Segundo o ofício da Natividade, o anjo com a espada flamejante se afasta da árvore da vida cujos frutos - a vida eterna- se oferecem desde então na Eucaristia. À saudade inata de imortalidade e paraíso, sempre normativos de nossa verdadeira natureza, corresponde a presença real do Reino. O tempo litúrgico já é a eternidade e o espaço sagrado do templo, liturgicamente orientado, é já o Oriente do reino. A eternidade não é nem anterior nem posterior ao tempo. A "nova criatura" transcende a história para o advento das condições do Reino, manifestadas já aqui embaixo, na existência terrestre dos santos. Um encontro ainda que furtivo com um santo já é uma janela aberta sobre o Reino; por esta abertura o sol nos inunda. "A alma cristã é o retorno ao paraíso", dizem os Pais, e a história está "à espera das almas ante as portas do Reino". A parte do homem, sua participação na obra de salvação, terá sempre seu lado antinômico. Por uma parte, "se Deus considerasse os méritos, ninguém entraria no Reino", diz Marcos, o Eremita; e, por outra parte, segundo o adágio patrístico: "Deus pode tudo, menos coagir alguém para que O ame". A verdade não pode ser senão um chamado, um convite que abarca uma potencial resposta negativa. A fé é esse sim sagrado e profundo que o homem pronuncia na fonte do seu ser, e então o "homem é justificado pela fé". (Romanos 3:28). No amor o homem coloca todo o seu ser livremente ao objeto de sua fé. Mas desde que abandonou o topo do mistério , a razão lança a rede deformada de sua "luz natural" . Já o prefixo "pre " na presciência e predestinação aprisiona a sabedoria de Deus nas categorias de tempo e reduz a Encarnação a soteriologia, a um meio de resgate.
No entanto, a razão profunda para a Encarnação não vem do homem, mas de Deus, de seu desejo de fazer-se homem e de fazer de sua humanidade uma Teofania consubstancial a todos, sua morada trinitária: "Viremos a ele e faremos nele morada" (João 14, 23). De acordo com Metódio do Olimpo: "O Verbo caiu para fazer-se homem antes dos séculos". A grande síntese de Máximo Confessor estende a linha indicada por Irineu e Atanásio: "Deus criou o mundo para fazer-se homem nele e para que o homem se fizesse nele deus por graça e participasse das condições da existência divina... Em seu conselho, Deus decide unir-se com o ser humano para deificá-lo", o que não tem medida comum com apenas o perdão e a salvação. Acima da curva possível da queda, Deus esculpiu o rosto humano mirando em sua Sabedoria o Rosto Eterno de Cristo (Colossenses 1: 15.., 1 Coríntios, 15, 47, Jo, 3, 11). A propósito da Encarnação, o Credo Niceno confessa: "Para nós, homens, e para nossa salvação". Padre Sérgio Bulgakov precisou:  "para a nossa salvação" significa redenção e "para nós homens" deificação. Isso, de acordo com Paulo, é "uma sabedoria divina, misteriosa, oculta, que Deus destinou para nossa glória antes dos tempos eternos" (1 Cor., 2, 7). A economia da Glória está além da escolha angelical ou humana, Lúcifer ou Adão.
A expiação e o julgamento respondem à queda, o reino e a deificação à Encarnação. A Igreja oferece o organismo da salvação, os meios de santificação, mas também a salvação mesma, a presença do reino. A recapitulação em Cristo no céu e na terra é universal e não exclui ninguém; no entanto, seu término é um mistério transcendente do Pai, que não permite pré julgamento: na melhor das hipóteses, uma esperança aberta...

2) A constituição do ser humano

De acordo com a Bíblia, a alma dá vida ao corpo, o faz "alma vivente" e o espírito pneumatiza todo o ser humano. O corporal e o psíquico existem um no outro, regido cada um por suas próprias leis; o espiritual não é a terceira esfera, senão o princípio de qualificação que se expressa através do psíquico e do carnal e os faz espirituais. Segundo as palavras de Santo Agostinho, o homem pode fazer-se carnal até em seu espírito, pode fazer-se espiritual até em sua carne. O espírito é este ponto avançado que se comunica com o que está mais além e que participa dele.
Demasiado amplo em sua significação, o espírito não pode servir de centro hipostático do ser humano. Há que buscá-lo na noção bíblica de "coração". De acordo com os judeus, você pensa com o coração, pois integra todos os poderes do espírito humano. É o centro radiante, mas permanece escondido em suas profundezas misteriosas.
Meus sentimentos, meus pensamentos, minhas ações, minha consciência me pertencem, eles são meus e eu tenho consciência; mas o que está muito além do "meu" é transcendente a suas próprias manifestações. Aqui não se trata do "eu empírico", cognoscível, senão do espiritual que escapa a toda investigação. Esta é a noção limite, centro da totalidade que Jung chama de "Selbst", o uno mesmo. Só a intuição mística o descobre e só o símbolo do coração o designa. "Quem pode conhecer o coração?", pergunta Jeremias que o responde instantaneamente: "Só Deus sonda o coração". Também São Gregório de Nissa sublinha essa profundidade misteriosa: "Nossa natureza espiritual existe segundo a imagem do Criador; se parece com o que está acima dela (seu arquétipo divino), na incognoscibilidade de si mesma, manifesta o selo do inacessível".
A presença de Deus se manifesta "nos espaços ou pastos do coração" e a este nível se situa a pessoa. O "personalismo" filosófico jamais alcança uma definição satisfatória da pessoa humana. A única luz vem do dogma trinitário, porque o homem em sua estrutura reflete o divino. Cada pessoa divina é uma doação subsistindo no Outro e na "circunspecção" dos 3 únicos. Falando estritamente, só em Deus existe a pessoa e só Deus personaliza toda pessoa humana, situando-a em sua verdade.
A hipóstase ou pessoa em Deus é determinada por suas relações, mas também por tudo o que excede essas relações: o Uno em si. Assim também a pessoa humana escapa a toda definição racional e não pode ser senão captada por meio de uma apreensão intuitiva ou revelação mística. Também por ela o homem é o único com o poder de rebaixar-se a si mesmo para o infinito que é Deus. A pessoa se faz transcendendo-se para Deus. A este nível, a pessoa enquanto hipóstase não nos pertence em propriedade: a recebemos na comunhão com Deus; é a "identidade pela Graça", segundo expressão de São Máximo. A hipóstase do verbo é o lugar da união do divino e do humano. A pessoa de todo ser humano se faz "hipóstase", bem como a imagem do Cristo é o lugar de comunhão entre Deus e o homem, quando "enhipostasia" a existência teândrica "divino-humana". O homem, diz São Basílio, "é uma criatura condenada a ser deus, o que significa tomar posse de seu ser deificado. Segundo São Máximo, a pessoa é chamada a unir pelo amor a natureza criada com a natureza incriada" (as energias deificantes).
"Deus honrou ao homem concedendo-lhe a liberdade", por isso, "o Espírito não engendra nenhuma vontade que lhe resista. Não transforma por divinização senão o que quer", diz São Máximo. A angústia que o espírito humano pode sentir vem do arbitrário sempre possível que o persegue, porque pode recusar a vida, dizer não à existência. O homem está suspenso a cada momento entre o ser que tem a vocação de realizar algo ou voltar ao nada de onde foi tirado, este é o risco grande e nobre de toda existência e a tensão suprema da esperança: "Sendo capaz o poder divino de inventar uma esperança onde não há esperança e um caminho no impossível", diz magnificamente São Gregório de Nissa. O impossível é essa tensão entre o normativo da imagem de Deus e o real decaído.
O homem é um projeto vivente de Deus. ele deve decifrá-lo e construir livremente seu destino. Assim, a existência é a tensão criadora para descobrir e viver a própria verdade, que então se faz vida. "Não conheço a verdade senão quando se faz vida em mim", advertia profundamente Kierkegaard.
"Já não os chamo servos, chamo amigos" (João 15,15). Acima da ética dos escravos e mercenários, o Evangelho coloca a "ética dos amigos de Deus". Nossa liberdade e, por conseguinte, nosso livre "agir humano" se convertem na verdadeira liberdade quando se põem dentro do "agir" de Deus: a verdade é o que nos faz verdadeiramente livres" (João 8,32).
A Graça pede secretamente a cada alma, sem jamais coagi-la. Em resposta, a fé não é uma submissão cega, nem simples adesão, senão fidelidade consciente e total da pessoa à Pessoa. Estas são as relações nupciais, a Bíblia se serve sempre delas para descrever as relações entre Deus e o homem. Ao dizer o "fiat", o "sim" me identifico com o ser amado. Deus pede ao homem a realização da vontade do Pai, pois esta é a vontade própria do homem. Este é o sentido do "sede perfeitos como Vosso Pai celeste é perfeito".
Diante de Deus a vontade humana proclama "Seja feita a Tua Vontade". Mas podemos dizer "sim", como podemos dizer "não" à sua vontade, o nosso outro ressoa totalmente, porque ressoa livremente, já que podemos dizer não. É preciso, pois, que este sim seja engendrado no mais profundo de nosso ser; por isso a que pronuncia em nome de todos é uma Virgem, nova Eva, mãe de todos os viventes e fonte vivificante. Deus não dá ordens, mas lança convites, chama: "Escuta Israel", ou "se queres ser perfeito". Ao decreto de um tirano responde uma resistência surda; o convite do Senhor do banquete, a aceitação gozosa do "que tem ouvidos..." . Nos vasos de barro, Deus depositou sua liberdade, sua imagem. Se o fracasso é possível, se no ato criador se inclui a hipótese da ruína, é que a liberdade dos "deuses", o seu amor livre, é a própria essência da pessoa humana.
A palavra latina "persona", a mesma que "prosopon" em grego, que dizer "máscara". Ensina a ausência de uma ordem humana autônoma, porque não faz parte do ser ou nada. Nesta participação do homem, ele pode verter-se em semelhança de Deus, seu ícone, ou dissimulando-se, apresentar o sorriso demoníaco de um macaco de Deus. São Gregório de Nissa diz claramente: "A humanidade se compõe de homens com face de anjo e de homens que carregam a marca da besta". Assim o homem pode reacender a chama do amor, ou o fogo da geena; pode converter seu sim em encontros infinitos; pode também com seu não romper seu ser em separações infernais. Segundo São João (1 João 3,2) , no século futuro seremos semelhantes a Ele, semelhantes a Ele em sua comunhão perfeita do divino humano. O homem foi criado à imagem de Deus com vistas a esta comunhão. Os postulados do conhecimento de Deus se encontram, pois, na estrutura mesma do seu ser.

3) A imagem e semelhança de Deus

Todos os antropólogos, crentes e não crentes, concordam com a definição de homem: um ser que aspira ser superado, um ser que tende ao que lhe é maior. Seria preciso um São Paulo para decifrar esse "Deus desconhecido", para dar nome a esta aspiração fundamental , cuja fonte é a imago Dei. Essa "imagem" para os pais da Igreja não é uma ideia reguladora ou instrumental senão o princípio constitutivo do ser humano. O pecado, segundo São João (1 João 4,6) é a "anomia", a desordem, transgressão do limite normativo constitutivo do ser humano, confusão profunda do fundamento ontológico da natureza. A perversão reclama o ato terapêutico, reconstrução da estrutura normativa. A "catarse ética", purificação das paixões, desemboca na "catarse ontológica", cura terapêutica da natureza. Se trata do restabelecimento da forma primeira, da restauração da imagem arquetípica.
Santo Atanásio recolhe a afirmação de Santo Irineu e formula a regra de ouro da tradição: "Deus se fez homem para que o homem se fizesse deus". Ele insiste no caráter ontológico da participação do divino através da imagem. A imagem é constitutiva a ponto de "criação" significar "participação": o homem é criado como um ser participante, predestinado em sua própria estrutura à iluminação de seu "nous", que lhe confere a capacidade inata da teognosia, do conhecimento de Deus. Também São Basílio diz: "Como em um microcosmo, em ti verás a marca da sabedoria divina". Vê-se o entendimento em sua intencionalidade original, orientada para Deus: "Por nossa própria natureza possuímos o desejo ardente do belo... tudo aspira a Deus". São Gregório de Nazianzo, falando do sopro divino, fala que o carismático irradia a imagem. Assim o homem não só está ordenado moralmente ao divino, senão que é da raça divina, como diz São Paulo (Atos 17,29). Segundo São Gregório de Nissa, "o homem está relacionado com Deus", é divino por Natureza, o que predestina a "theosis", a "deificação", a comunhão mais íntima com Deus. Se a inteligência, sabedoria, amor são a imagem das mesmas realidades em Deus, da imagem de Deus vem sobretudo o poder de determinar-se livremente por si mesmo. A função axiológica do juízo, da apreciação, do discernimento, faz do homem o ser que reina sobre a natureza, verbo cósmico que participa das condições da vida divina. Entre Deus e o homem deificado a diferença é esta: "O divino é incriado, ainda que o homem exista por criação". Sobre este plano universal, em função da imagem, o cristianismo se define como "Imitação da Natureza de Deus", a multitude das hipóstases humanas unidas na mesma natureza humana.
O cultivo da atenção espiritual entre os ascetas faz dela uma verdadeira arte de ver todo o ser humano como "imagem de Deus". "Um monge perfeito", diz Nilo do Sinai, "estimará depois de Deus a todos os homens como Deus mesmo". A tradição dos grandes mestres da vida espiritual surpreende por sua tonalidade de alegria e por sua apreciação máxima do homem. Terapeutas práticos, não possuem necessidade de ensinar nada sobre a amplitude da perversão, senão que sua arte de cardiognose e sua penetração nas profundidades da alma fazem ver a "nova criatura" revestida completamente da forma divina. Um tropário do ofício dos defuntos diz: "Levo os estigmas de minha iniquidade, mas sou a imagem de tua glória inefável".
Criada à imagem de Deus a verdadeira natureza é boa. Por isso a redenção devolve à natureza curada, não a sobrenatureza, senão a seu estado inicial, sua verdade "sobrenaturalmente natural".
Visitar o imenso campo do pensamento patrístico, infinitamente rico e diferenciado, tem-se a impressão que o mesmo evita qualquer sistematização, para salvaguardar toda flexibilidade assombrosa. No entanto, podemos tirar algumas conclusões. Em primeiro lugar, temos de pôr de lado qualquer noção substancialista de imagem. Esta não é depositada em nós como parte de nosso ser, senão que a totalidade do ser humano é criada, esculpida, modelada "à imagem de Deus". A expressão primeira da imagem consiste na estrutura hierárquica do homem, com a vida espiritual no centro. É o primado ontológico da vida do espírito que condiciona a aspiração fundamental ao espiritual , ao Infinito e ao Absoluto. É o impulso dinâmico de todo o nosso ser para o Arquétipo Divino, aspiração irresistível para Deus. É o eros humano tendendo ao Eros Divino, sede insaciável, densidade do desejo de Deus, como expressa admiravelmente São Gregório de Nazianzo: "Vivo, falo e canto para ti..."
Em resumo, cada faculdade do espírito humano reflete a imagem (conhecimento, liberdade, amor, criação), e o todo está focado no espiritual do qual é próprio superar-se para mergulhar no oceano do divino e encontrar ali o apaziguamento de sua nostalgia. Todo limite  contém um mais além, sua própria transcendência; por isso a alma não pode descansar senão no Infinito Divino. É a "epectasis", tensão do ícone para seu Arquétipo. "Por meio da imagem, diz São Macário, a Verdade lança o homem em perseguição". Em nosso desejo de Deus descobrimos já sua presença, porque "o amor de Deus é sempre operante" diz São Gregório de Nissa.


4) A diferença entre a imagem e a semelhança

Para o gênio hebraico, sempre concreto, imagem-tselem tem um sentido muito forte. A proibição de imagens esculpidas pela lei é explicada pelo significado dinâmico e realista da imagem: como o nome, suscita a presença do que representa.  "Demouth", que se traduz por similitude, semelhança, nos incita a considerar-se como outro. Ela pode ser comparada com a noção de "Schaliach": o apóstolo de um homem é como um outro de si mesmo.
A "imagem" é por excelência toda sagrada, não pode sofrer qualquer alteração. Mas ela pode ser reduzida ao silêncio e tornar-se ineficaz pela modificação das condições ontológicas. A imagem, fundamento objetivo, não pode manifestar-se senão na semelhança subjetiva; a queda a fez radicalmente inacessível às forças naturais do homem. Sem estar pervertida, a imagem se fez inoperante. São Gregório Palamas precisa a tradição: "Por sermos à imagem, somos superiores aos anjos; mas inferiores na semelhança por sermos instáveis, depois da queda, rejeitamos a semelhança, mas não perdermos o ser à imagem". Cristo devolve ao homem o poder de agir. Os sacramentos do batismo e da unção crismal restauram a "semelhança no ato", o que libera  a imagem cuja irradiação se faz perceptível nos santos e nas crianças. Graças à imagem o homem sempre conservou a liberdade de opção. Ainda no tempo da Antiga Aliança, o desejo de bem subsistia, sem que, no entanto, o homem pudesse atualizar em sua vida. Em sua Teologia da Graça, os Padres distinguem claramente entre o "Livre Arbítrio de intenção" e o "Livre Arbítrio do ato". Afirmam a plena liberdade do desejo de ser salvo, a sede da cura, a capacidade de formular o "fiat". Depois da Encarnação, a graça atualiza a deiformidade virtual. "Ser criado à imagem de Deus" se converte em "existir na imagem de Deus". Desde então, como diz São Máximo, tem-se duas asas para se chegar ao céu, à liberdade e à graça. "Em qualquer esforço da vontade a Graça responde para cumpri-la. Deus faz tudo em nós, a gnose, a vitória, a sabedoria, a bondade e a virtude sem que tenhamos de contribuir com nada, senão apenas com a disposição da vontade; mas esta boa disposição da vontade é um ato absolutamente livre que coloca o agir humano dentro do agir divino. A "virtude" é essa disposição que desencadeia a ação da Graça a fazer atos sinérgicos. Em um sentido, o sentido do homem é já operante, porque responde ao desejo de Deus e assim atrai a vinda da Graça. Este é todo o papel imenso do "fiat" da Virgem. A Anunciação é como uma pergunta que Deus dirige à humanidade: tens sede de salvação, queres verdadeiramente levar em tuas entranhas e engendrar a teu próprio Salvador? E da parte de todos a Virgem diz Sim. Este sim é a condição objetiva da Encarnação; o Verbo não podia forçar a Natureza  Humana; a Virgem se oferece livremente da parte de todos.
Para os Padres, um ser não amadurece senão pelo Espírito Santo, isto ocorre quando é efetivamente a imagem que se parece com Deus. Um santo é chamado liturgicamente "semelhante". A imagem constitutiva e normativa, em sua função de deiformidade, torna reais as palavras: "Sede perfeitos como Vosso Pai celestial é Perfeito". A cristologia ensina que em Cristo "os filhos no Filho" são realmente filhos no Pai "semelhantes ao filho". São Gregório de Nissa enfatiza o papel da imagem: "para participar de Deus é indispensável possuir no seu ser algo correspondente ao participado". O "Deus é amor" corresponde ao "amo ergo sum" do homem. Calixto, na "Filocalia" diz: "A coisa mais importante que acontece entre Deus e a alma humana é amar e ser amado".
Assim, a antropologia dos Padres e sua noção da imagem mostram ao ser humano deiforme em sua própria estrutura que ele está destinado à comunhão deificante capaz de conhecer a Deus à medida da capacidade de cada um. Como escreve um mestre da vida espiritual contemporâneo: "Deus se dá aos homens de acordo com a sua sede. Aos que não podem beber  mais, não dá mais que uma gota. Mas Ele gostaria de dar torrentes, para que, por sua vez, os cristãos pudessem saciar a sede do mundo."