domingo, 24 de agosto de 2014

Uma Bíblia, duas alianças

O texto abaixo é o primeiro capítulo do livro Eastern orthodox Tradition, de Eugen J. Pentiuc, Oxford Press, 2014, pags. 3 a 61

"A Lei e os Profetas, a Igreja unifica em um volume com os escritos dos 
evangelistas e apóstolos a partir dos quais ela bebeu sua fé"
(Tertuliano, Prescrição contra os Heréticos 36)

Um antigo ícone e sua mensagem eterna

O peregrino ao entrar no Mosteiro de Santa Catarina no Monte Sinai tem o privilégio de admirar um dos mais velhos ícones que sobreviveram à fúria do iconoclasmo da metade do século oitavo ao nono. O ícone, representado no painel, é conhecido como o Cristo Pantokrator, "Cristo Onipotente", ou simplesmente o "O Cristo do Sinai" (abaixo).

Através dos séculos, este ícone tornou-se o modelo para toda representação do Pantokrator situada na cúpula central ou no teto da nave nas Igrejas Ortodoxas Orientais. Ao contrário dos ícones epígonos feitos em afresco, mosaico ou outras técnicas, muitas vezes retratando um Senhor ameaçador e impassível, o ícone de Sinai, por outro lado, representa um Jesus muito especial, um Jesus com dois olhares: um ser humano tolerante ainda que implacável juiz. O lado direito de sua face mostra um semblante leve, enquanto o lado esquerdo exibe uma face mais severa, evidenciada pela pupila dilatada. E o efeito destes dois diferentes olhares é intensificado pela posição das mãos: enquanto a mão direita abençoa o visitante, a esquerda tem um livro enfeitado com jóias fechado, selado com uma cruz e coberto em couro.
Ainda que a intenção original do artista provavelmente nunca seja descoberta, o significado básico deste ícone que data do reino glorioso de Justiniano (527- 65 d. C.) pode ser decodificado. Jesus é de uma só vez um amigo compassivo e um juiz severo, pronto ao mesmo tempo para abençoar e para condenar. O Jesus do Sinai é, para citar Irineu (115-220 d. C), "o Salvador daqueles que são salvos, e o Juiz daqueles que são julgados" (Contra os Heréticos, 3.4.2).
Aparentemente, o iconógrafo anônimo que "descreveu" o retrato do Sinai tinha se confrontado com estas mesmas questões tal como o homem moderno, crente ou não: Quem é Jesus? Foi ele um rabino galileu do primeiro século que encontrou um destino inoportuno às mãos de uma autoridade romana cruel em Jerusalém? Um profeta apocalíptico itinerante, em conflito perpétuo com a autoridade judaica? Um sábio judeu enigmático, oferecendo uma sabedoria enigmática com seus ditos? Um ex-fariseu que ensinou e viveu sua fé em um caminho mais tolerante e inclusivo do que aquele de seus companheiros membros do mesmo partido? Ou ele é o Senhor encarnado, o "ícone" tocável de um Senhor santo e intocável, o Filho de Deus encarnado que habita entre nós?
Para colocar a questão de um modo diferente: Era o Jesus da Novo Testamento Aquele registrado pelos Evangelhos? Se sim, quais Evangelhos? Era Ele o Jesus das epístolas paulinas? Era Ele o Jesus de alguma tradição cristã em particular? Ou Ele era o único  a quem os estudiosos bíblicos procuraram libertar do monopólio dogmático da Igreja secular?
A Igreja Ortodoxa afirma que seu Jesus é o mesmo falado pelas Escrituras e conhecido no interior do meio de vida da Igreja Tradicional.  O ícone do Sinai é apenas um pequeno exemplo desta tradição viva. Como veremos, esta tradição é temperada com sabores litúrgicos e coreografada pelos padres, concílios e a piedade dos leigos. Para os ortodoxos, Jesus não pode ser fragmentado - pelo menos um Jesus fragmentado não tem nada a ver com o Jesus conhecido na veneração da Igreja. O Jesus da tradição Ortodoxa é uma pessoa ao mesmo tempo simples e complexa. Uma vida não pode ser simplificada e reduzida a uma única faceta. No entanto também uma pintura complexa, feita de muitas facetas, conduziria novamente a uma fragmentação. A visão ortodoxa incorpora uma forma de equilíbrio entre a simplicidade e a complexidade ao apresentar o perfil de Jesus.
Como o ícone do Sinai evidencia ao mesmo tempo a humildade compassiva de Jesus e sua soberania de juiz, assim também o mais óbvio elemento da pregação apostólica (kerigma) é a fascinante mistura de fraqueza e força na pessoa de Jesus. Esta liga une todos os quatro Evangelhos Canônicos em um círculo pleno, a despeito das dissimilaridades entre eles. E novamente, trata-se a face com os dois olhares, as mãos de uma só vez abençoando e segurando um livro selado em cruz.
Aqui é Paulo falando da kenosis, ou "auto-esvaziamento" do Logos tornado carne, em que glória e humildade são vistos coexistir:

"Ainda que fosse Deus em essência, não quis ser reconhecido como Deus por usurpação,
mas esvaziou-se de si mesmo, tomou a forma de um escravo, fazendo-se semelhante aos homens.
E achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo e tornou-se obediente até à morte - e morte 
de cruz. Por isso também Deus o exaltou soberanamente e deu a Ele o nome que está acima
de todo nome, para que assim ao nome de Jesus todo joelho se dobre, nos céus e na terra e abaixo
da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para a Glória de Deus Pai"
(Filipenses 2: 6-11).

É a mesma mistura da suprema dignidade ou poder e fraqueza como no ícone do Sinai. Jesus é o Sumo Sacerdote que é capaz de sentir a debilidade humana:

"Visto que temos um grande sumo sacerdote que atravessou os céus, Jesus, o Filho de Deus,
retenhamos firmemente nossa confissão. Pois não temos um sumo sacerdote incapaz de se
simpatizar com nossas fraquezas, mas nós temos um que em todos os aspectos foi tentado como 
nós, ainda que sem pecar. Aproximemo-nos ao trono da graça com ousadia, para que assim possamos receber misericórdia e encontrar graça para ajudar no tempo da necessidade"
(Hebreus 4: 14-16)
rever
Como pode alguém enunciar esta indescritível mistura de compaixão e rigor, vislumbrada já nos primeiros Evangelhos canônicos? Por dois diferentes olhares, responde silenciosamente o anônimo "escritor" do ícone do Sinai.

Em nenhum lugar estas antinomias que consistem de aspectos tensos - fraqueza e poder, humildade e glória - são melhor recordadas do que no Quarto Evangelho. Aqui Jesus é capaz de dominar os fenômenos naturais (João 6:19) ainda que também derrame lágrimas na tumba de Lázaro (João 11:35). Nas palavras de Haroldo W. Attridge, "Reduzir estes elementos tensos a índices de desenvolvimento documental é ignorar seu papel conceitual... A manipulação dos ditos do Filho do Homem revela uma apropriação deliberada das tradições sobre Jesus, mantendo as afirmações sobre a glória e o sofrimento de Jesus em uma tensão irônica que convida o leitor ou ouvinte do Evangelho a contemplar o significado da cruz".
Os ditos polarizantes surpreendem o título messiânico "Filho do Homem" o qual tem o mesmo papel que a face de dois olhares. Eles convidam o leitor a tomar um vislumbre mais próximo a Jesus antes de reduzi-lo a um mero ser humano ou a um caráter estritamente divino. Como o observador do ícone do Sinai, o leitor dos Evangelhos é convidado a saborear a "aura misteriosa" do Filho do Homem e, ao fazer isso, descobrir o sentimento de admiração que uma criança experimenta ao ouvir um conto de fadas.
Não é surpreendente que, focado com esta realidade, a Igreja emergente foi confrontada desde o início com a tentação de "Outro Jesus" (2Cor 11:4) do que aquele pregado pelos apóstolos. A figura  mais evasiva da História da Humanidade escapa dos construtos fáceis e audaciosos da mente humana. Nossa terminologia é muito fraca, muito estreita para descrever a complexidade ou a simplicidade irredutível de Jesus de Nazaré.
No relato de Lucas da história da Transfiguração, aprendemos que quando Jesus estava rezando sua face tornou-se diferente (heteron)" (Lucas 9:20). Talvez a face "diferente" seja uma pista do destino futuro de Jesus, aquele disposto a se identificar com o "menor" de seus irmãos (cf. Mateus 25:40). O que é mais interessante no relato da Transfiguração são as palavras transpostas para a voz divina: "Escutem-No" (Lucas 9:35). Escutar toma a precedência sobre o ver em matéria de fé (Romanos 10:17). A "alteridade" de Jesus proposta pela narrativa da Transfiguração torna-se questão de fé, de preferência a um simples experimento mediado pelo ver.
Na tradição oriental ortodoxa, esta perpétua e sempre intrigante "alteridade" do Senhor Jesus habita no cenário litúrgico, onde a riqueza de meios envolvendo os sentidos ecoam um perfil de Jesus bastante complexo ancorado no passado, presente e futuro. Os ortodoxos vêem Jesus em um sentido holístico, com foco especial na relação pessoal e comunitária com Ele. As modernas distinções entre um Jesus Histórico, um Jesus da piedade, ou um Jesus distinto daquele do Novo Testamento são estranhas à tradição da Ortodoxia Oriental e, mesmo hoje, estranhas aos ouvidos ortodoxos.
O ícone do Sinai é um convite em aberto para encontrar este Jesus único, cujo testemunho é perpetuado pela escrita de palavras cheias de cor. É um aceno tácito para o mistério, simples esboço do que os pais reunidos na Calcedônia em 451 buscaram traçar em suas quádruplas fórmulas: "um e o mesmo Cristo, Filho, Senhor, unigênito, em duas naturezas confessas, sem confusão, imutável, indivisível, inseparável".

Uma mão abençoando e um livro selado em cruz

Mas o ícone do Sinai não é apenas sobre o perfil misterioso de Jesus, com suas facetas divina e humana. Ele também revela uma relação estreita entre Jesus e o Livro.
Se alguém dá outra olhada, nota que enquanto a mão direita de Jesus está abençoando, sua mão esquerda está segurando um livro selado com uma Cruz com a mão fechada. Os iconógrafos bizantinos posteriores abririam o livro e inscreveriam lá dentro palavras proferidas por Jesus como registradas nos Evangelhos Canônicos. Quando aberto, os versos inscritos identificariam o tomo claramente como o livro do Evangelho. Mas no ícone do Sinai o livro está fechado.
Fechado também está o acesso a uma resposta definitiva para uma questão inevitável e urgente: é apenas o Evangelho ou a Bíblia toda, contendo os dois testamentos? Provavelmente o artista anônimo quis o foco caindo na cruz marcada na capa, ao invés do próprio livro. De fato, a cruz funciona como um selo central do livro. Se alguém considera o olhar duro da face esquerda de Jesus, então o livro selado em cruz segurado por sua mão esquerda pode conotar a verdade que Cristo julgará de acordo com os preceitos encontrados no livro. Ou que ele julgará aqueles que resistem ao livro e ao seu sinal de cura, a cruz.

A mão que abençoa e o olhar doce da face de Jesus fala-nos de sua abertura e de seu desejo em seu auscultado, abordado e alcançado em um diálogo pessoal. Por outro lado, segurando o livro fechado, fala da importância da Escritura na vida daqueles que entrariam neste diálogo.

Uma mão que abençoa e um livro selado definem a Cristandade sendo, ao mesmo tempo, uma religião do livro e uma religião de uma pessoa, centrada em um diálogo vivo em curso entre Jesus e seus seguidores: "E lembrem-se , eis que estarei convosco sempre até o fim dos tempos" (Mateus 28:20). Isto aparece em forte constraste com o lamento anterior de Baruch no segundo livro cap. 85:3: "Nós deixamos nossa terra e Sião foi tirada de nós, e não temos nada senão o Poderoso e sua Lei".
A Cristandade tem se auto compreendido como uma fé e um caminho de vida baseados na vida e sacrifício de uma pessoa _ que é o Cristo, e em recordações escritas entregues pelos profetas e apóstolos _ os livros do antigo e novo testamentos. Não há Escritura sem Cristo como não há Cristo sem Escritura; e isto é verdadeiro em todas as fases da cristandade. Conhecimento da pessoa de Cristo e conhecimento das Escrituras são elementos interdependentes que compensam toda a fábrica da fé cristã.
A mão direita elevada em benção é um gesto litúrgico, sacerdotal enquanto a outra mão está segurando um livro selado em cruz como se convidasse e dirigisse a atenção para um tesouro precioso. Por este duplo gesto, a misteriosa figura com os dois olhares sugere que se pode abordá-lo em dois sentidos complementares. Pode-se abordá-lo abrindo o livro e lendo suas palavras - nunca negligenciando a cruz e a paixão significado por ele, que é o selo do livro inteiro, seu elemento unificador. E pode-se abordá-lo através da mão elevada em benção sacerdotal: através do diálogo pessoal iniciado e fomentado pelo cenário litúrgico de veneração comunitária. os dois sentidos de descoberta do Cristo: a palavra escrita e a veneração litúrgica. 
A mesma ação recíproca entre a palavra viva e escrita e a comunicação pessoal é atestada mais tarde pela própria Divina Liturgia Ortodoxa, com suas duas partes principais: a "liturgia do Mundo" e a "Liturgia da Eucaristia". Como as duas mãos do ícone do Sinai, as duas partes da Divina Liturgia são inseparáveis. Palavra e adoração são duas partes complementares, caminhos entrelaçados para a descoberta e redescoberta de Cristo e decifram o "código" enigmático de sua face com seus dois olhares. Veneração sem palavra pode descambar numa prática mágica indesejável ou num ritualismo oco. Igualmente, palavra sem adoração corre o risco de tornar-se um exercício livresco, sem raízes ou frutos na realidade passada ou presente. Isso pode verter o Cristo em um objeto de investigação sem vida, desfigurando uma pessoa irredutível em um emaranhado disperso de peças de um quebra cabeça sem fim.
O mundo escritural é capaz de transformar um exercício de veneração redundante em um diálogo único, uma relação pessoal que tem seu ponto de partida numa auto comunicação de Deus. Em seu turno, adoração, especialmente a adoração eucarística, pode vivificar as palavras espirituais, criando um meio transparente entre o leitor e a realidade que jaz por trás do texto: o Verbo encarnado do próprio Deus.
É com esta forte convicção que o autor tornou evidente através de seu trabalho o que a tradição oriental ortodoxa sempre promoveu e incorporou, desde os tempos apostólicos, o entendimento de que a Escritura pode ser interpretada e transmitida não apenas pelas palavras escritas ou pronunciadas, mas através de vários canais de veneração pública (i.e, aural, visual, ascética), rotuladas frequentemente como Santa Tradição. O ícone do Sinai direciona a atenção a estes dois canais de testemunho, recordando a pessoa de Jesus: o livro selado com a cruz e a liturgia em suas várias expressões de ritual, hino e ícone. O último meio de testemunho será tratado na segunda parte deste trabalho. Por agora, nós permanecemos no livro e em seus dois componentes, o Novo e o Velhos Testamentos.
O artista que pintou o ícone do Sinai não dá nenhuma pista acerca do livro que Jesus segura com a mão esquerda. Numa primeira visada, é um robusto códice marcado com uma cruz, os braços ladeados por quatro minúsculas constelações tri-estelares. Aparentemente, ele representa a Bíblia cristã envolvendo o Antigo e o Novo testamentos. A cruz inscrita na capa pode ser lida como um símbolo ou elemento unificador que mantém os dois testamentos unificados no livro. John D. Levenson corretamente nota que a "Bíblia cristã contém em seu interior um livro de uma religião estrangeira". Em que sentido então a cruz sela os dois livros e seus dois pactos em um único? Que tipo de unidade é esta? Do que segue, discutiremos como as autoridades da Igreja através dos séculos tentaram responder a esta questão recordando as duas partes da Bíblia Cristã e suas interrelações.