sábado, 26 de janeiro de 2013

Dostoiévski e a psicologia

O texto a seguir, que será postado aos poucos, à medida em que estiver sendo traduzido por mim do inglês, é de Robert L. Belknap, e faz parte do Cambridge Companion to Dostoievskii, Cambridge University Press, 2002, páginas 131 a 147.

Dostoiévski e a psicologia

O pano de fundo psicológico de Dostoiévski


Na época de Dostoiévski, o limite entre ciência e filosofia era tão indistinto quanto foi antes de Sócrates, e o estudo da psique misturou-se inseparavelmente com aquele da religião, da política e com toda a natureza. Como um homem de seu tempo, Dostoiévski conhecia uma série de sistemas psicológicos: alguns entraram em seu imaginário e em sua consciência cultural; alguns moldaram a maneira como ele descreveu seus personagens; a luta entre dois desses sistemas interagiu com suas ideias sociais mais básicas. Ele conhecia a teria da Renascença dos quatro humores, por exemplo, que atribuiu ao caráter humano, comportamento e estado da mente o equilíbrio ou desequilíbrio dos quatro fluidos no corpo: cólera, fleuma, bílis e bílis negra, que torna os homens coléricos, fleumáticos, irritáveis (biliosos) ou melancólicos (atrabiliários), o que pode diretamente ou indiretamente explicar porque o fígado do herói é descrito como doente no início das Memórias do Subsolo (v, 99; Pt I, Sec. I). Dostoiévski tinha também tomado contado com a antiga ciência da fisionomia, que descobriu o caráter nas características faciais, e a teoria popular da frenologia de Franz Joseph Gall (1758-1828), que traçava nosso caráter à autonomia do cérebro refletido nas saliências ou marcado nas regiões do crânio.  Ele conhecia a teoria pitagórica e asiática da transmigração das almas, e a teoria de Platão da divisão tripartite da alma, com a razão, a paixão e o apetite competindo pelo controle. Mas, como muitos de seus contemporâneos, ele extraiu sua doutrina psicológica central de duas grandes tradições, uma milenar, e a outra crescendo diretamente do pensamento do século XVIII: a tradição dos neurologistas e aquela dos alienistas.

Filosoficamente, os neurologistas eram materialistas, como Leucipo, Demócrito e os antigos epicuristas, mas estes antigos tinham levado o materialismo muito mais longe do que sua contraparte moderna, já que acreditavam que as percepções e ideias mesmas eram atualmente feita de átomos voando no mundo e retendo seu arranjo até que acertassem, enquanto que o filósofo do século dezoito Diderot acreditava que percepção e consciência residiam em nossos nervos ou em suas atividades. Em seu famoso Discurso com D'Alembert , Diderot compara os poderes associativos da mente com a ressonância harmônica que faz certas cordas de instrumento e não outras vibrarem quando uma determinada corda foi atingida. Os positivistas do século XIX eram mais ingênuos e tentaram compreender esta metáfora, com seus microscópios traçaram os axônios em torno do corpo e suas cargas elétricas pela contração dos músculos. Os filósofos admitiram que eles mesmos não tinha visto ainda os nervos vibrarem, mas acreditavam  que a ciência em breve reduziria toda a mente humana a uma coleção de vibrações observáveis. Claude Bernard (1813-78), que conduziu os mais famosos experimentos em sapos e outros animais, também escreveu as mais eloquentes exposições do método científico como foi codificado no pensamento positivista. O expoente russo mais influente desta abordagem neurológica dos trabalhos da mente nunca existiu: Turgenev Bazarov pode ter sido ficcional, mas o 'niilismo' que ele propôs formou o entendimento e as atitudes das gerações que seguiram a aparição de Pais e Filhos em 1862. Entre os cientistas verdadeiros, Ivan Sechenov (1829-1905) foi o mais proeminente na geração de Dostoiévski, e seu seguidor Ivan Pavlov (1849-1936) cria a cena para todo o movimento behaviorista da psicologia mais recente.

Filosoficamente, Dostoiévski rejeitou esta psicologia neurológica, juntamente com as variedades de niilismo, racionalismo, positivismo, cientificismo, ateísmo, socialismo, internacionalismo e feminismo que os materialistas do tempo tendiam a favor, a despeito da sua curiosidade acerca de sua própria epilepsia e sobre as teorias de seus inimigos ideológicos o manterem alerta quanto ao desenvolvimento médico na área neurológica (i).  Nos Irmãos Karamazov, o sarcasmo grosseiro de Dimitri desafoga certa impaciência para a complacência simplista da psicologia positivista que ele ouviu de Raktin, o seminarista ingênuo:

"Eu sinto pena de Deus"
"Como você pode sentir pena de Deus?"
"Imagine só: nos nervos, na cabeça, isto é, no cérebro há estes nervos (para o inferno com eles!)... há estes tipos de caudas - os nervos têm estas caudas, e, tão logo se mexam ... isto é, eu olho algo com meus olhos,como isto por exemplo, então eles se mexem, estas caudas... e é por meio disso que  eu percebo, então penso que é por conta destas caudas que existem, e não por causa da alma ou porque eu tenha algum tipo de Imagem e Semelhança. Isso tudo é muito estúpido" (XV, 28; BK II, Sec. 4).  

Dostoiévski sentiu-se muito próximo das práticas curandeiras para doenças psíquicas, frequentemente chamados de alienistas no século XIX. Sua tradição também tinha suas raízes mais próximas no século XVIII, mas não era totalmente respeitável. A ideia do 'magnetismo animal' foi popularizada em toda Europa por Friederich Anton Mesmer (1733- 1815), que foi ou uma fraude consciente ou um entusiasta que se auto proclamava. Ele afirmou ter técnicas para controlar um fluido magnético que lembra o trabalho dos imãs, de acordo com os físicos daquele tempo, mas o fluido de Mesmer trabalhou em plantas e animais. Ele realizou sessões onde as pessoas hipnotizadas, às vezes produzindo curas certificáveis. No século XIX, seus sucessores, trabalhando na Escócia, Bélgica e em outros lugares, rejeitaram a ideia de um fluido magnético mas exploraram o fenômeno do sonho hipnótico, frequentemente chamado de sonambulismo naquele tempo. Em 1830 doutores descreveram ter amputado uma perna sob anestesia hipnótica e depois acordar o paciente, que perguntou quando iriam operar. Hipnotizadores exploraram sonhos, alucinações, memórias ocultas, ações aberrantes, e usaram o conceito de inconsciente para explicar comportamentos doentios e estranhos. Quando Sofia Kovalevskaia acusou Dostoiévski de copiar Alesha Karamazov do herói da história 'Mikhail' de sua irmã Anna Korvinkrukovskaia, que ele tinha publicado em seu jornal Época, ele bateu na testa e disse, 'Você está certa, mas foi completamente inconsciente'. Os periódicos russos frequentemente continham artigos sobre o progresso científico deste ramo da psicologia, mas Dostoiévski dificilmente teria necessidade de ler os cientistas; seus autores favoritos já tinham assimilado o sensacionalismo assustador do assunto. E. T. A. Hoffmann, Dumas, Dickens, Edgar Allan Poe e os novelistas góticos ingleses todos usaram a tradição hipnótica para formar seus enredos, seu imaginário e as relações entre seus personagens. O terrificante olhar fixo de Murin em The Landlady de Dostoiévski, ou de Rogozin em O Idiota, ou de Stavrogin em Os Demônios não necessitou vir diretamente do olhar fixo descrito ou praticado por qualquer hipnotizador; ele estava na atmosfera literária de Dostoiévski. O Duplo de Dostoiévski é a primeira descrição de um homem se desintegrando rumo à loucura, e de um doutor tentando tratá-lo, mas a série inteira das histórias de Petesburgo, que ele escreveu no final dos anos 1840, lida com personagens que parecem precisar de ajuda psicológica, cada um com um diferente conjunto de sintomas, como se Dostoiévski estivesse explorando o mundo da psicopatologia de uma maneira científica. Em O Duplo e em outras histórias anteriores, mas também no trabalho maduro de Dostoiévski, muito da psicopatologia segue a sintomatologia tradicional de seu próprio tempo: a inabilidade para ver o todo, o foco em uma estrela, um botão, um conceito único; a atribuição de querer coisas inanimadas; a atitude fora das posições teóricas; a geração e interação com um caráter não existente, frequentemente incorporando alguns componentes da identidade doentia da pessoa; o obscurecimento da linha entre fantasia e realidade; e finalmente a perda completa de contato com a realidade

Perto do fim de sua carreira, quando Dostoiévski procurou descrever a alucinação febril de Ivan Karamazov acerca do mal, ele fez seu texto como um alienista, um médico que não se opõe tanto ou ignora as doutrinas dos neurologistas, da mesma forma, por outro lado, Bazarov ignorou o pano de fundo intelectual de curandeiros como seu pai. Dostoiévski cresceu em um hospital de caridade e compartilhou mais tarde um alojamento com um doutor, e sua simpatia estava muito mais próxima aos curandeiros do que às investigações científicas que estavam transformando a psicologia em sua época. Mas diferente de Bazarov ou dos alienistas, ele não ignorou também estas duas escolas de psicologia adversárias. Sua lista de interesses incluiria frequentemente os nomes de Carl Gustav Carus (1789-1869), George Henry Lewes (1817-78) e outros exploradores da psique. Dostoiévski foi mais parecido com seus contemporâneos, Jean-Martin Charcot (1825-1869), que usou tanto hipnotismo e neurologia em Salpêtrie em Paris para produzir a maior síntese destas duas escolas de psicologia. Quando o estudante de Charcot, Freud, passou a gerar um dos principais sistemas psicológicos do século vinte, ele expressou sua dívida não apenas com relação aos seus mentores médicos, mas também aos insights de Dostoiévski, provavelmente percebendo que ambos tinham os mesmos fundamentos intelectuais.

O romance psicológico

O intelecto de Dostoiévski operou novelisticamente de longe bem melhor do que sistematicamente. Nas investigações psicológicas, como nas políticas, religiosas, educacionais, entre outras, seus escritos jornalísticos contribuíram para nosso pensamento em primeiro lugar como anotações ou notas de rodapé de suas ficções, não como exposição de um corpo coerente de raciocínio. O romance psicológico tem um rico passado nos trabalhos acerca dos séculos XVII e XVIII de Mme de Lafayette, Abbé Prévost, Samuel Richardson, Jean-Jacques Rousseau e muitos outros, mas ele prossegue sendo desinventado por ideólogos e reinventado por seus oponentes, por conta das sutilezas da psicologia que desafia a maioria das ideologias. No início de 1860 o O que é para ser feito? de Chernyshevskii prendeu o olhar público. Dostoiévski reagiu contra a política utópica e utilitarista deste romance, mas ele também reagiu contra novelisticamente. Consideremos a cena onde o narrador de Chernyshevskii pergunta que tipo de pessoa é o seu herói Lopakhin, e responde que ele é o tipo de pessoa que, empobrecido e vestido em trapos, se recusa a dar passagem a um oficial dominador e cheio de auto-satisfação que ele encontra caminhando pela rua. Ao invés disso, Lopakhin toma o homem, lança-o em uma vala enlameada e ameaça-o, em seguida puxa-o, comporta-se como se o homem tivesse tido um acidente e segue neste caminho. Novelisticamente, Dostoiévski reagiu iradamente contra o fato que Lopakhin preenchia as necessidades de uma política igualitária de Chernyshevskii e as teorias da dignidade humana universal, sem nenhuma motivação interna ou psíquica. Ele admirou-se do tipo de ser humano que surgiria nos tempos modernos preocupado em defender seu direito de passagem na calçada ou preocupado com seu traje. Robin Hood no Merrie Inglaterra, ou Tybalt na feira de Verona, podem cuidar de tais questões, mas um russo do século dezenove que se preocupasse tanto com sua dignidade soaria muito estranho. Assim Dostoiévski inventou uma psicologia para o herói de Chernyshevskii: um homem tão insignificante que tendia a ser ignorado, e tão inseguro com relação a tudo que constantemente e ofensivamente necessitava de atenção. O homem do subsolo desafia a doutrina de Chernyshevskii em vários sentidos, mas a infantilidade da psicologia do primeiro desafia toda a pretensão de se escrever uma novela feita de personagens exemplares e de ações exemplares, mas nada disso Dostoiévski considera ser uma vida interior. Pois o homem do subsolo, dando lugar à rua, adquire uma enormidade cuja morbidez chama a atenção da falta de qualquer tipo de psicologia em  Lopakhin.

Chernyshevskii pode ignorar a psique e isolar os motivos sociais de seus heróis, mas Dostoiévski não podia ignorar o social; ele percebera que muitas de nossas ações emergem da ação recíproca entre nossa identidade social e psicológica, mas como um romancista ele descobriu vários sentidos em explorar a psique isolada do social. O homem do subsolo teoriza sobre o determinismo e sua implicação de que nossas ações tenham uma origem inteiramente externa, de que nós apenas reagimos como teclas de piano, tão previsivelmente quanto logaritmos, mas ele levou em consideração a constatação de que na realidade nós frequentemente agimos contrariamente a nossos interesses externos, ou os ignoramos completamente. Essa constatação da gratuidade abre um espaço onde o romancista pode explorar a psique como pura ação, diluída pela reação. Na linguagem do ensaio posterior de Emile Zola, 'Le Roman expérimental' (1880), o ato gratuito permite que um romancista conduza esta parte de seu experimento com substâncias químicas e assim revelar a verdadeira natureza da psique de um determinado personagem.  Dostoiévski usou a prova da gratuidade para explorar a identidade de seus personagens não razoáveis. Goliadkin algumas vezes responde à palavras e ações de seus colegas no escritório, ou de seu médico, mas nós aprendemos muito sobre ele quando ele simplesmente examina seu nariz, freta uma carruagem, entra numa loja e não compra nada, ou absurdamente trava uma festa. Estas ações são sem causa, e assim delineiam seu interesse extraordinário por sua aparência, o que permite a ilusão, a realidade ou o jogo de um duplo que o destrói. Com outros personagens o ato gratuito pode ser raro, mas eles revelam a psique com a mesma claridade. Fedor Karamazov geralmente se comporta como um homem de negócios astuto e bem sucedido, ainda que por auto indulgência, mas quando ele perturba um encontro importante com uma série de histórias desonrosas, ele revela a mais alta criatividade cômica de sua imaginação depravada. No mesmo sentido, o assassinato de Raskolnikov é sobre-determinado, nós sabemos sua reação ao noivado de sua irmã com Luzhin, sua reação supersticiosa a um encontro casual com a lembrança de tal assassinato, seu desejo de ser da elite dos que são eleitos para o crime, etc., mas nós podemos realmente aprender sobre o Raskolnikov que emerge no final do romance, dos presentes gratuitos aos Marmeladovs, sua ajuda a um estranho na rua, seu heroísmo em salvar crianças que não conhecia de um prédio em chamas, ou seu próprio envolvimento com uma menina moribunda.

Estes atos gratuitos revelam Raskolnikov mais claramente do que o ocorrido. Isto também revela ma diferença interessante entre Dostoiévski e  Freud. Para Freud o subconsciente não tem a capacidade para analisar e moralizar. Em Crime e Castigo, o subconsciente é profundamente moral; os sonhos de Raskolnikov e as ações impulsivas lutam contra a rejeição racional de sua mente dos valores morais. Não há nada original no uso de Dostoiévski da gratuidade como meio de exploração de psicologias não usuais. Poe, Laclos, Balzac e outros sem conta usaram disso antes dele, mas ele fez dela seu instrumento maior de investigação, um dos elementos chave da psicologia, que Poe chamara de perverso e Dostoiévski de paradoxal.

Uma segunda maneira de explorar a psique fora do reino das ações e reações causadas é colocar um personagem em uma posição de impotência total, onde nada do que ele faz produz qualquer diferença. O que alguém faz em tal momento expressa sua identidade pura. Marmeladov coloca-o em tal posição e fala a Raskolnokiv, "você sabe perfeitamente bem de antemão que esta pessoa, que este cidadão excelentemente intencionado e supremamente útil, não lhe dará qualquer dinheiro. (...) E então, sabendo de antemão que ele não vai dar, você sai de qualquer maneira" (VI, 14; Pt I, Sec. 2). Uma pessoa gentil da narrativa se casa com um agiota horrível quando a outra alternativa é igualmente horrível. Os estupros de Stavogrin, ou os abusos Ivan Karamazov descrevem toda essa experiência de total desamparo que os capacita expressar ou desespero suicida, ou a fé no Filho de Deus, ou o que quer que constitua o centro da identidade que Dostoiévski criou para eles. Um personagem maior como Dimitri Karamazov revela seu padrão particular de dependência e credulidade pueril quando ele visita Kuzma Samsonov e Mme Khoklakova e percebe que não há absolutamente qualquer chance que  eles ou quem quer que seja lhe ofereçam o dinheiro para salvar o que resta de sua honra. Tais situações são cruéis e muitos leitores apresentam uma fascinação mórbida pela crueldade de Dostoiévski. Máximo Gorki disse que o sadismo era uma característica central em seus romances e seu motivo para escrevê-los era "nosso gênio maligno".

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(i) James L. Rice, Dostoevsky and the Healing Art: An Essay in Literary and Medical History (Ann Arbor, Ardis, 1985).