quinta-feira, 27 de abril de 2017

domingo, 6 de novembro de 2016





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sexta-feira, 6 de março de 2015

O aparecimento dos Escritos Cristãos: o Evangelho da Salvação

(continuação do post anterior)

A meta desta seção não é reiterar o que já se pode ser encontrado no presente em termos de trabalhos eruditos acerca do Novo Testamento. Assim, eu não entrarei aqui na discussão técnica sobre as várias "Cristandades" (i. e, gentílica, judaica ou joanina) que podem ter formado o texto do Novo Testamento, ou os diversos gêneros literários que contribuíram para diferenças tão óbvias entre Mateus, Lucas e Marcos de um lado e João de outro, ou o assim chamado problema sinóptico e a fonte-Q proposta. Em vez disso, o objetivo aqui é dar uma olhada mais de perto para o caminho em que as autoridades da Antiga Igreja avaliaram o aparecimento dos quatro Evangelhos Canônicos e seu "status" como Escritura. Quais foram os acontecimentos centrais que determinaram às comunidades cristãs primitivas por em escrito o testemunho apostólico? E como a Igreja primitiva entendeu as diferenças entre os escritos resultantes? Mais importante ainda, como a Igreja nestes primeiros séculos entenderam a relação entre estes Evangelhos e as antigas Escrituras Judaicas?
Os aspectos definidores da pessoa de Jesus foram inicialmente proclamados através do querigma apostólico: "Nós  vos anunciamos o que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com nossos olhos, o que olhamos e tocamos com nossas mãos, acerca do mundo da vida ... nós proclamamos (apangelomen) a vós o que nós vimos e ouvimos para que assim vós possais ter amizade conosco; e verdadeiramente nossa amizade é com o Pai e com Seu Filho Jesus Cristo". (Primeira a João 1:13). Este foi o relato das testemunhas oculares da primeira geração de discípulos de Jesus. Mas o que desencadeou esta proclamação oral (kerigma) para ser posta por escrito? Em primeiro lugar, foi o fato e o testemunho da ressurreição de Jesus dos mortos.
Para os primeiros seguidores de Jesus o próprio fato e testemunho da ressurreição funcionou como ponte entre o "Jesus Histórico" e a metahistória, do Senhor (Kyrios) sempre presente e escatológico. Aquele que o confessa como Senhor e crê que Deus o ressuscitou pode entrar em um diálogo vivo com Ele (Romanos 10:9). A "boa nova" (Evangelho) que Jesus de alguma maneira sobreviveu, ou retornou à vida após morte violenta tomou todos os lugares, suas ações anteriores e ditos, em uma nova matriz interpretativa. Sua pessoa era agora vista fora de uma pequena localidade e de uma arena temporal, o primeiro século da Palestina, onde desdobrou-se sua missão. Jesus era reconhecido como o Kyrios, o "Senhor", o intocável, como se pode concluir do relato pós ressurreição com Maria Madalena na manhã de Domingo no jardim onde estava sepultado (João 20: 11-18).

domingo, 24 de agosto de 2014

Uma Bíblia, duas alianças

O texto abaixo é o primeiro capítulo do livro Eastern orthodox Tradition, de Eugen J. Pentiuc, Oxford Press, 2014, pags. 3 a 61

"A Lei e os Profetas, a Igreja unifica em um volume com os escritos dos 
evangelistas e apóstolos a partir dos quais ela bebeu sua fé"
(Tertuliano, Prescrição contra os Heréticos 36)

Um antigo ícone e sua mensagem eterna

O peregrino ao entrar no Mosteiro de Santa Catarina no Monte Sinai tem o privilégio de admirar um dos mais velhos ícones que sobreviveram à fúria do iconoclasmo da metade do século oitavo ao nono. O ícone, representado no painel, é conhecido como o Cristo Pantokrator, "Cristo Onipotente", ou simplesmente o "O Cristo do Sinai" (abaixo).

Através dos séculos, este ícone tornou-se o modelo para toda representação do Pantokrator situada na cúpula central ou no teto da nave nas Igrejas Ortodoxas Orientais. Ao contrário dos ícones epígonos feitos em afresco, mosaico ou outras técnicas, muitas vezes retratando um Senhor ameaçador e impassível, o ícone de Sinai, por outro lado, representa um Jesus muito especial, um Jesus com dois olhares: um ser humano tolerante ainda que implacável juiz. O lado direito de sua face mostra um semblante leve, enquanto o lado esquerdo exibe uma face mais severa, evidenciada pela pupila dilatada. E o efeito destes dois diferentes olhares é intensificado pela posição das mãos: enquanto a mão direita abençoa o visitante, a esquerda tem um livro enfeitado com jóias fechado, selado com uma cruz e coberto em couro.
Ainda que a intenção original do artista provavelmente nunca seja descoberta, o significado básico deste ícone que data do reino glorioso de Justiniano (527- 65 d. C.) pode ser decodificado. Jesus é de uma só vez um amigo compassivo e um juiz severo, pronto ao mesmo tempo para abençoar e para condenar. O Jesus do Sinai é, para citar Irineu (115-220 d. C), "o Salvador daqueles que são salvos, e o Juiz daqueles que são julgados" (Contra os Heréticos, 3.4.2).
Aparentemente, o iconógrafo anônimo que "descreveu" o retrato do Sinai tinha se confrontado com estas mesmas questões tal como o homem moderno, crente ou não: Quem é Jesus? Foi ele um rabino galileu do primeiro século que encontrou um destino inoportuno às mãos de uma autoridade romana cruel em Jerusalém? Um profeta apocalíptico itinerante, em conflito perpétuo com a autoridade judaica? Um sábio judeu enigmático, oferecendo uma sabedoria enigmática com seus ditos? Um ex-fariseu que ensinou e viveu sua fé em um caminho mais tolerante e inclusivo do que aquele de seus companheiros membros do mesmo partido? Ou ele é o Senhor encarnado, o "ícone" tocável de um Senhor santo e intocável, o Filho de Deus encarnado que habita entre nós?
Para colocar a questão de um modo diferente: Era o Jesus da Novo Testamento Aquele registrado pelos Evangelhos? Se sim, quais Evangelhos? Era Ele o Jesus das epístolas paulinas? Era Ele o Jesus de alguma tradição cristã em particular? Ou Ele era o único  a quem os estudiosos bíblicos procuraram libertar do monopólio dogmático da Igreja secular?
A Igreja Ortodoxa afirma que seu Jesus é o mesmo falado pelas Escrituras e conhecido no interior do meio de vida da Igreja Tradicional.  O ícone do Sinai é apenas um pequeno exemplo desta tradição viva. Como veremos, esta tradição é temperada com sabores litúrgicos e coreografada pelos padres, concílios e a piedade dos leigos. Para os ortodoxos, Jesus não pode ser fragmentado - pelo menos um Jesus fragmentado não tem nada a ver com o Jesus conhecido na veneração da Igreja. O Jesus da tradição Ortodoxa é uma pessoa ao mesmo tempo simples e complexa. Uma vida não pode ser simplificada e reduzida a uma única faceta. No entanto também uma pintura complexa, feita de muitas facetas, conduziria novamente a uma fragmentação. A visão ortodoxa incorpora uma forma de equilíbrio entre a simplicidade e a complexidade ao apresentar o perfil de Jesus.
Como o ícone do Sinai evidencia ao mesmo tempo a humildade compassiva de Jesus e sua soberania de juiz, assim também o mais óbvio elemento da pregação apostólica (kerigma) é a fascinante mistura de fraqueza e força na pessoa de Jesus. Esta liga une todos os quatro Evangelhos Canônicos em um círculo pleno, a despeito das dissimilaridades entre eles. E novamente, trata-se a face com os dois olhares, as mãos de uma só vez abençoando e segurando um livro selado em cruz.
Aqui é Paulo falando da kenosis, ou "auto-esvaziamento" do Logos tornado carne, em que glória e humildade são vistos coexistir:

"Ainda que fosse Deus em essência, não quis ser reconhecido como Deus por usurpação,
mas esvaziou-se de si mesmo, tomou a forma de um escravo, fazendo-se semelhante aos homens.
E achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo e tornou-se obediente até à morte - e morte 
de cruz. Por isso também Deus o exaltou soberanamente e deu a Ele o nome que está acima
de todo nome, para que assim ao nome de Jesus todo joelho se dobre, nos céus e na terra e abaixo
da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para a Glória de Deus Pai"
(Filipenses 2: 6-11).

É a mesma mistura da suprema dignidade ou poder e fraqueza como no ícone do Sinai. Jesus é o Sumo Sacerdote que é capaz de sentir a debilidade humana:

"Visto que temos um grande sumo sacerdote que atravessou os céus, Jesus, o Filho de Deus,
retenhamos firmemente nossa confissão. Pois não temos um sumo sacerdote incapaz de se
simpatizar com nossas fraquezas, mas nós temos um que em todos os aspectos foi tentado como 
nós, ainda que sem pecar. Aproximemo-nos ao trono da graça com ousadia, para que assim possamos receber misericórdia e encontrar graça para ajudar no tempo da necessidade"
(Hebreus 4: 14-16)
rever
Como pode alguém enunciar esta indescritível mistura de compaixão e rigor, vislumbrada já nos primeiros Evangelhos canônicos? Por dois diferentes olhares, responde silenciosamente o anônimo "escritor" do ícone do Sinai.

Em nenhum lugar estas antinomias que consistem de aspectos tensos - fraqueza e poder, humildade e glória - são melhor recordadas do que no Quarto Evangelho. Aqui Jesus é capaz de dominar os fenômenos naturais (João 6:19) ainda que também derrame lágrimas na tumba de Lázaro (João 11:35). Nas palavras de Haroldo W. Attridge, "Reduzir estes elementos tensos a índices de desenvolvimento documental é ignorar seu papel conceitual... A manipulação dos ditos do Filho do Homem revela uma apropriação deliberada das tradições sobre Jesus, mantendo as afirmações sobre a glória e o sofrimento de Jesus em uma tensão irônica que convida o leitor ou ouvinte do Evangelho a contemplar o significado da cruz".
Os ditos polarizantes surpreendem o título messiânico "Filho do Homem" o qual tem o mesmo papel que a face de dois olhares. Eles convidam o leitor a tomar um vislumbre mais próximo a Jesus antes de reduzi-lo a um mero ser humano ou a um caráter estritamente divino. Como o observador do ícone do Sinai, o leitor dos Evangelhos é convidado a saborear a "aura misteriosa" do Filho do Homem e, ao fazer isso, descobrir o sentimento de admiração que uma criança experimenta ao ouvir um conto de fadas.
Não é surpreendente que, focado com esta realidade, a Igreja emergente foi confrontada desde o início com a tentação de "Outro Jesus" (2Cor 11:4) do que aquele pregado pelos apóstolos. A figura  mais evasiva da História da Humanidade escapa dos construtos fáceis e audaciosos da mente humana. Nossa terminologia é muito fraca, muito estreita para descrever a complexidade ou a simplicidade irredutível de Jesus de Nazaré.
No relato de Lucas da história da Transfiguração, aprendemos que quando Jesus estava rezando sua face tornou-se diferente (heteron)" (Lucas 9:20). Talvez a face "diferente" seja uma pista do destino futuro de Jesus, aquele disposto a se identificar com o "menor" de seus irmãos (cf. Mateus 25:40). O que é mais interessante no relato da Transfiguração são as palavras transpostas para a voz divina: "Escutem-No" (Lucas 9:35). Escutar toma a precedência sobre o ver em matéria de fé (Romanos 10:17). A "alteridade" de Jesus proposta pela narrativa da Transfiguração torna-se questão de fé, de preferência a um simples experimento mediado pelo ver.
Na tradição oriental ortodoxa, esta perpétua e sempre intrigante "alteridade" do Senhor Jesus habita no cenário litúrgico, onde a riqueza de meios envolvendo os sentidos ecoam um perfil de Jesus bastante complexo ancorado no passado, presente e futuro. Os ortodoxos vêem Jesus em um sentido holístico, com foco especial na relação pessoal e comunitária com Ele. As modernas distinções entre um Jesus Histórico, um Jesus da piedade, ou um Jesus distinto daquele do Novo Testamento são estranhas à tradição da Ortodoxia Oriental e, mesmo hoje, estranhas aos ouvidos ortodoxos.
O ícone do Sinai é um convite em aberto para encontrar este Jesus único, cujo testemunho é perpetuado pela escrita de palavras cheias de cor. É um aceno tácito para o mistério, simples esboço do que os pais reunidos na Calcedônia em 451 buscaram traçar em suas quádruplas fórmulas: "um e o mesmo Cristo, Filho, Senhor, unigênito, em duas naturezas confessas, sem confusão, imutável, indivisível, inseparável".

Uma mão abençoando e um livro selado em cruz

Mas o ícone do Sinai não é apenas sobre o perfil misterioso de Jesus, com suas facetas divina e humana. Ele também revela uma relação estreita entre Jesus e o Livro.
Se alguém dá outra olhada, nota que enquanto a mão direita de Jesus está abençoando, sua mão esquerda está segurando um livro selado com uma Cruz com a mão fechada. Os iconógrafos bizantinos posteriores abririam o livro e inscreveriam lá dentro palavras proferidas por Jesus como registradas nos Evangelhos Canônicos. Quando aberto, os versos inscritos identificariam o tomo claramente como o livro do Evangelho. Mas no ícone do Sinai o livro está fechado.
Fechado também está o acesso a uma resposta definitiva para uma questão inevitável e urgente: é apenas o Evangelho ou a Bíblia toda, contendo os dois testamentos? Provavelmente o artista anônimo quis o foco caindo na cruz marcada na capa, ao invés do próprio livro. De fato, a cruz funciona como um selo central do livro. Se alguém considera o olhar duro da face esquerda de Jesus, então o livro selado em cruz segurado por sua mão esquerda pode conotar a verdade que Cristo julgará de acordo com os preceitos encontrados no livro. Ou que ele julgará aqueles que resistem ao livro e ao seu sinal de cura, a cruz.

A mão que abençoa e o olhar doce da face de Jesus fala-nos de sua abertura e de seu desejo em seu auscultado, abordado e alcançado em um diálogo pessoal. Por outro lado, segurando o livro fechado, fala da importância da Escritura na vida daqueles que entrariam neste diálogo.

Uma mão que abençoa e um livro selado definem a Cristandade sendo, ao mesmo tempo, uma religião do livro e uma religião de uma pessoa, centrada em um diálogo vivo em curso entre Jesus e seus seguidores: "E lembrem-se , eis que estarei convosco sempre até o fim dos tempos" (Mateus 28:20). Isto aparece em forte constraste com o lamento anterior de Baruch no segundo livro cap. 85:3: "Nós deixamos nossa terra e Sião foi tirada de nós, e não temos nada senão o Poderoso e sua Lei".
A Cristandade tem se auto compreendido como uma fé e um caminho de vida baseados na vida e sacrifício de uma pessoa _ que é o Cristo, e em recordações escritas entregues pelos profetas e apóstolos _ os livros do antigo e novo testamentos. Não há Escritura sem Cristo como não há Cristo sem Escritura; e isto é verdadeiro em todas as fases da cristandade. Conhecimento da pessoa de Cristo e conhecimento das Escrituras são elementos interdependentes que compensam toda a fábrica da fé cristã.
A mão direita elevada em benção é um gesto litúrgico, sacerdotal enquanto a outra mão está segurando um livro selado em cruz como se convidasse e dirigisse a atenção para um tesouro precioso. Por este duplo gesto, a misteriosa figura com os dois olhares sugere que se pode abordá-lo em dois sentidos complementares. Pode-se abordá-lo abrindo o livro e lendo suas palavras - nunca negligenciando a cruz e a paixão significado por ele, que é o selo do livro inteiro, seu elemento unificador. E pode-se abordá-lo através da mão elevada em benção sacerdotal: através do diálogo pessoal iniciado e fomentado pelo cenário litúrgico de veneração comunitária. os dois sentidos de descoberta do Cristo: a palavra escrita e a veneração litúrgica. 
A mesma ação recíproca entre a palavra viva e escrita e a comunicação pessoal é atestada mais tarde pela própria Divina Liturgia Ortodoxa, com suas duas partes principais: a "liturgia do Mundo" e a "Liturgia da Eucaristia". Como as duas mãos do ícone do Sinai, as duas partes da Divina Liturgia são inseparáveis. Palavra e adoração são duas partes complementares, caminhos entrelaçados para a descoberta e redescoberta de Cristo e decifram o "código" enigmático de sua face com seus dois olhares. Veneração sem palavra pode descambar numa prática mágica indesejável ou num ritualismo oco. Igualmente, palavra sem adoração corre o risco de tornar-se um exercício livresco, sem raízes ou frutos na realidade passada ou presente. Isso pode verter o Cristo em um objeto de investigação sem vida, desfigurando uma pessoa irredutível em um emaranhado disperso de peças de um quebra cabeça sem fim.
O mundo escritural é capaz de transformar um exercício de veneração redundante em um diálogo único, uma relação pessoal que tem seu ponto de partida numa auto comunicação de Deus. Em seu turno, adoração, especialmente a adoração eucarística, pode vivificar as palavras espirituais, criando um meio transparente entre o leitor e a realidade que jaz por trás do texto: o Verbo encarnado do próprio Deus.
É com esta forte convicção que o autor tornou evidente através de seu trabalho o que a tradição oriental ortodoxa sempre promoveu e incorporou, desde os tempos apostólicos, o entendimento de que a Escritura pode ser interpretada e transmitida não apenas pelas palavras escritas ou pronunciadas, mas através de vários canais de veneração pública (i.e, aural, visual, ascética), rotuladas frequentemente como Santa Tradição. O ícone do Sinai direciona a atenção a estes dois canais de testemunho, recordando a pessoa de Jesus: o livro selado com a cruz e a liturgia em suas várias expressões de ritual, hino e ícone. O último meio de testemunho será tratado na segunda parte deste trabalho. Por agora, nós permanecemos no livro e em seus dois componentes, o Novo e o Velhos Testamentos.
O artista que pintou o ícone do Sinai não dá nenhuma pista acerca do livro que Jesus segura com a mão esquerda. Numa primeira visada, é um robusto códice marcado com uma cruz, os braços ladeados por quatro minúsculas constelações tri-estelares. Aparentemente, ele representa a Bíblia cristã envolvendo o Antigo e o Novo testamentos. A cruz inscrita na capa pode ser lida como um símbolo ou elemento unificador que mantém os dois testamentos unificados no livro. John D. Levenson corretamente nota que a "Bíblia cristã contém em seu interior um livro de uma religião estrangeira". Em que sentido então a cruz sela os dois livros e seus dois pactos em um único? Que tipo de unidade é esta? Do que segue, discutiremos como as autoridades da Igreja através dos séculos tentaram responder a esta questão recordando as duas partes da Bíblia Cristã e suas interrelações. 


sábado, 5 de outubro de 2013

Cristianismo e História

O texto abaixo faz parte do sexto capítulo da obra "El sentido de la História" de Nikolai Berdyaev, Madrid, Encontro Ediciones, 1979, páginas 54 a 62. Infelizmente, não conhecendo russo e não querendo postar o texto em espanhol o disponibilizo uma versão que fiz em português a partir da edição que tenho em espanhol. Espero que seja de alguma ajuda.



Cristianismo e História
Nikolai Berdyaev

Em um dos capítulos anteriores, falei longamente da relação privilegiada existente entre o cristianismo e a história, da historicidade do cristianismo, e nos referimos a Schelling, o qual em sua Vorlesungen über die Methode des akademischen Studiums expôs com particular força a ideia de que o cristianismo é revelação histórica através da história. Ao mesmo tempo, Schelling disse que o cristianismo é essencialmente dinâmico, não é estático, é uma força que irrompe na história e, portanto, se diferencia profundamente do mundo antigo que, dada sua tendência contemplativa, era fundamentalmente estático. Este dinamismo é tão intenso que até esteve presente nos casos em que havia apostasia. Em tais casos o dinamismo se expressava de outras formas, por exemplo, na forma de rebelião, de revolta contra o destino: revoltas tão violentas só aparecem no período em que já há cristianismo, pois tal dinamismo engendra por vezes algo que lhe é oposto e que é errado. Esta historicidade e dinamicidade excepcionais do cristianismo estão ligadas principalmente ao fato central da História Cristã (a aparição de Cristo), como sendo um fato único e irrepetível, que funda o caráter específico de todo o "histórico". De sua parte, toda a história universal caminha para este fato central e irrepetível. Este caráter único e irrepetível do "histórico", este nexo da história celestial com a terrena, tem no mundo cristão uma configuração histórica muito complexa, em que se refratam todas as forças fundamentais da história espiritual precedente. Nesta configuração se dá, sobretudo, a interação dos princípios judaico e helênico. Só o conflito e a interação de ambos os princípios explicam a aparição do cristianismo na história. Dentro do cristianismo aparecem alternadamente um ou outro. Cada um deles determina um aspecto do pluriforme e complexo mundo cristão. Os elementos judaicos são princípios veterotestamentários, legalistas e em certos momentos trouxeram como consequência a degeneração do cristianismo em um legalismo veterotestamentário; também podem dificultar a revelação da Graça, do amor e da liberdade e ser fonte de farisaísmo. Por outro lado, estes mesmos princípios podem dar origem a um espírito oposto, ao espírito apocalíptico, aberto a novas e mais perfeitas revelações. Este último espírito atua em um sentido totalmente oposto ao dos princípios veterotestamentários, mas ambos princípios judaicos são extremamente históricos, pois tanto é histórica a ação dos elementos legalistas que asseguram a tradição, como é também a ação dos elementos apocalípticos orientados para o futuro. Em geral, podemos dizer que a igreja cristã é, por sua própria natureza, fundamentalmente força histórica. Ela revelou isso na ordem histórica da humanidade e dirige (no plano religioso) os destinos das massas. A igreja é uma força impulsora da História na medida em que encerra em si os princípios judaicos, que são os fatores históricos por excelência. Por outra parte, os princípios helênicos não são menos dinâmicos que aqueles e são também um tesouro para o cristianismo. A ela está ligada, sobretudo, a vertente contemplativa do cristianismo. Toda a metafísica contemplativa, assim como a dogmática e mística cristãs se derivam do princípio helênico. Trata-se de elementos muito mais helênicos do que judaicos, pois a contemplação do ser divino é mais conforme ao espírito grego, enquanto o judaico prende-se ao vórtice da história. Além disso, toda estética e toda beleza estão ligadas aos elementos helênicos do cristianismo, porque o mundo helênico é o berço, a fonte da beleza presente no âmbito cristão, e no mundo em geral. Toda beleza cultural cristã amarra-se a isto e todas as tentativas protestantes de purificar o cristianismo do "paganismo" só serviram para debilitar a estética e a metafísica cristã, ou seja, tudo aquilo imbuído de espírito grego.

A historicidade e dinamicidade excepcionais do cristianismo estão ligadas ao fato de que ele revela (pela primeira vez e definitivamente) para o mundo, o princípio da liberdade espiritual, pressupondo que o verdadeiro sujeito da ação histórica é um sujeito livre, um espírito livre. Este pressuposto é essencial, tanto no que diz respeito à natureza do cristianismo quanto à natureza da história; se não admitimos esse sujeito que atua livremente e determina os destinos históricos da humanidade, não podemos falar propriamente de história.

Os gregos afirmavam a racionalidade e necessidade do bem; para eles isso era o resultado de uma vitória da razão. Sócrates foi o expoente desta concepção helênica. O bem é uma necessidade racional, suas leis se impõem à razão, e os princípios que se opõem a eles são irracionais. A concepção grega do bem não está ligada à liberdade. A concepção grega nunca chegou a formular uma concepção exata e verdadeira do bem, nem mesmo por meio de seus pensadores mais excelsos. O cristianismo, no entanto, afirma que o bem é livre, que é produto da liberdade do espírito, só tem valor real e é verdadeiramente bom o que procede de uma opção livre do espírito. É por isso que o cristianismo rejeitou a concepção do bem como algo racional e necessário, e esta é a marca registrada da Weltanschauung cristã. O cristianismo não só afirma a liberdade como conquista suprema e vitória da razão divina, senão que também afirma outra liberdade que condiciona o destino do homem e da humanidade e faz história.No cristianismo a própria Providência e sua ação são gratuitas, não tem nada a ver com o fatum. A Mentalidade Cristã se rebela contra aquela submissão ao fatum, típica do mundo antigo. A tragédia e a filosofia gregas proclamam esta submissão que, para elas, é a máxima sabedoria que pode alcançar o homem. Por outro lado, no cristianismo não é um princípio que se levanta contra essa submissão ao destino, mas a liberdade de escolha, a liberdade de afirmar o bem, localizadas nos arcanos da vontade e não da razão, pressupondo a liberdade do sujeito criador, do sujeito agente, sem o qual é impossível um verdadeiro dinamismo histórico. A ahistoricidade ou antihistoricidade da antiga cultura hindu e chinesa se explicam na medida em que ali não se chegou a descobrir-se a liberdade do sujeito criador. Nem se descobriu isso na filosofia dos vedas, que é um dos sistemas filosóficos mais importantes, nem a descobriram tampouco os filósofos que, em certo modo, afirmaram a liberdade entendida como confluência e identidade absolutas entre o espírito humano e o divino. A Índia não conheceu a liberdade do espírito humano e isto explica a insuficiente historicidade desta cultura singular. Foi o cristianismo o que pôs de manifesto (pela primeira vez e de modo definitivo) esta liberdade do sujeito criador, desconhecida no mundo pré cristão. Este descobrimento cristão dos princípios dinâmicos interiores da história, da evolução do destino do homem, do povo e da humanidade, criou, definitivamente a impetuosa história da época cristã, da qual a história anterior do cristianismo constituiu apenas um prelúdio e preparação.

Qual é o tema originário da História Universal? A nosso entender, o tema fundamental é o destino do homem, abordado através da interação entre o espírito humano e a natureza. Esta interação, esta ação do espírito humano sobre a natureza, sobre o cosmo, é também o fundamento primordial e o princípio originário do histórico. Ao longo da história da humanidade, contemplamos diversas formas de interação entre o espírito humano e a natureza global, formas que passam por diferentes períodos históricos. O estado primordial da história, resultado imediato do drama celeste-histórico através do qual o homem se separou de Deus, do drama do pecado original (que é, em definitivo, o drama da liberdade), afundou o espírito humano nas entranhas da necessidade natural. Desta forma, teve lugar a queda do homem no seio da Natureza, seu aprisionamento aos elementos que seduziram o homem e dos quais não podia evadir-se por suas próprias forças, pois era impossível quebrar o terrível feitiço que o submetia à necessidade natural. O estado primordial, característico de todos os povos bárbaros e selvagens, das mais antigas culturas e da história primordial do mundo antigo, se explica sempre a partir dessa imersão do espírito humano nos elementos da Natureza. O espírito humano perdeu sua liberdade originária e deixou de ser consciente disso. Imerso nas entranhas da necessidade, sua consciência filosófica não consegue ascender até a autoconsciência da liberdade, até a autoconsciência de si, como sujeito espiritual criador. Isso explica que o mundo antigo não conheceu a autêntica liberdade, pois o espírito humano, assombrado pelos elementos da natureza, havia perdido sua liberdade como consequência de seu afastamento primordial do Espírito de Deus. Aconteceu então uma espécie de degeneração: a liberdade degenerou-se em necessidade, o espírito não pode elevar-se até a revelação religiosa da liberdade ou o conhecimento filosófico da mesma. O tema do destino  histórico universal do homem é o tema da libertação do espírito humano criador das entranhas da terra, da necessidade natural, desta dependência e submissão da natureza. Tudo está ligado a esta abordagem e a solução deste problema tanto na Grécia como em geral todo o mundo antigo pagão. Esta imersão do espírito humano nos elementos da Natureza comportava no homem uma situação de amarga dependência e um terror espantoso com relação aos demônios da Natureza; o espírito humano, degradado e imerso na vida da Natureza, estava sujeito a ela, ao mesmo tempo, vivia em conexão com ela. A vida espiritual da Natureza se manifestava em estados sucessivos, e ele a sentia como a vida de um organismo vivente, espiritualizado, habitado por demônios, com os quais ele estava em permanente comunhão. As antigas mitologias nos falam deste vínculo com os espíritos da Natureza. Por esta  razão, todos os mitos antigos foram gerados através dessa interação entre o homem e a Natureza. O espírito humano decaído não se tornou senhor da Natureza, senão que, pelo contrário, através de uma volição livre, realizada no plano pré mundano, tornou-se escravo da Natureza e parte indissociável desta. Esta escravidão, esta dependência da Natureza, próprias dos primeiros estados da Natureza Humana, foram expressos na fórmula de um vínculo com a Natureza. O mundo pagão estava cheio de demônios e o homem não tinha forças para elevar-se acima destes demônios, deste turbilhão da Natureza. A imagem do homem se assemelha não à Natureza divina superior, senão à Natureza inferior, pululante, dos espíritos elementares. O homem tomou o tom da Natureza inferior em que havia caído, a que estava submetido, e não podia libertar-se por suas próprias forças. A obra sublime do cristianismo (que todavia não é reconhecida suficientemente no seio do mundo cristão) foi a de libertar o homem dos poderes demoníacos através da vinda de Cristo ao mundo, do drama da redenção do homem e do mundo. O cristianismo libertou quase à força o homem desta submissão à Natureza e o pôs novamente de pé no plano espiritual, restaurou sua condição de ser espiritual autônomo, o liberou desta sujeição a todo universal natural, o dignificou e o elevou até o céu. Só o cristianismo restituiu ao homem a liberdade espiritual da qual havia sido privado enquanto estava em poder dos demônios, dos espíritos da Natureza e das forças elementares, como ocorreu no mundo pré cristão. Para nós a essência do cristianismo está na libertação do homem, na possibilidade dada ao homem de realizar o seu destino; aqui reside o enorme significado da redenção interna e externa, da libertação dos elementos perversos que operam no mais íntimo de cada natureza. A sujeição do homem aos elementos da Natureza era, ao mesmo tempo, uma sujeição a si mesmo, aos seus elementos inferiores. O homem não podia libertar-se por si mesmo desta servidão, através da qual a liberdade havia degenerado em necessidade; por sua culpa havia debilitado o poder de sua liberdade. A redenção cristã, a vinda do homem divino, do Deus-homem, do homem como segunda pessoa da Trindade Divina, restitui-lhe o poder de liberdade, devolve ao homem a marca de sua origem divina, limpa a sua imagem da marca da escravidão, da submissão à Natureza inferior. Só a aparição do homem divino, só a aceitação de sua parte de todas as consequências do mal operado pelo homem no mundo, sua paixão e morte, seu sangue redentor, em definitivo, o drama sagrado da redenção, restitui ao homem a liberdade, o liberta dos elementos inferiores e o devolve amplamente à filiação divina perdida. Também as religiões antigas buscavam a redenção e pode dizer-se que, em todos os mistérios antigos estava presente o arquétipo da redenção cristã. Os mistérios de Osíris, Adônis, Dionísio, só representavam pressentimentos obscuros e uma sede ardente do mistério genuíno da redenção. A esses mistérios o homem anelava apaixonadamente libertar-se da escravidão da Natureza, conquistar a imortalidade, subtrair-se ao poder de espíritos inferiores; mas os mistérios do mundo antigo nunca conseguiram a libertação definitiva do homem, pois estavam imersos no tumulto da Natureza dos elementos inferiores.

Eram mistérios imanentes, naturais, nos quais o homem buscava a libertação das amarguras da existência através da mera comunhão com os elementos naturais. Assim os mistérios dionisíacos se celebravam de acordo com o próprio ciclo da natureza, da morte e do nascimento, do inverno e da primavera; mas estes mistérios não elevavam os homens acima dos elementos naturais, nem outorgavam uma autêntica redenção. O mundo antigo, no qual eram conhecidos estes mistérios, anelava ardentemente a libertação e, nos últimos dias, estava mais obcecado do que nunca pelo horror aos demônios da Natureza. Este terror característico dos últimos tempos do mundo antigo no qual se intensificaram e multiplicaram os cultos místicos em todos os lugares, alcançaram enorme dimensão e se tornaram verdadeiramente insuportáveis. A vida das pessoas que desejavam libertar-se desse terror e  alcançar a redenção se tornou verdadeiramente trágica. Só o cristianismo libertou o homem deste turbilhão dos elementos naturais, lhes devolveu seu lugar no mundo, restituiu a liberdade ao espírito humano e abriu um novo período no destino humano, um período em que este destino começa a ser definido e realizado por um sujeito autenticamente livre, um período em que o homem se torna consciente de sua liberdade. 

Este processo de libertação dos elementos da natureza tem a sua contrapartida, a qual chamam com amargura "a morte do grande Pan". O fim do mundo antigo e o começo do cristianismo comportam efetivamente um distanciamento do homem da vida íntima e profunda da Natureza. O grande Pan, que se manifestava no mundo antigo e estava próximo ao homem daquela época (imerso nas entranhas da natureza) afunda no seio da Natureza e está escondido dos olhares. Se abre um abismo entre o homem que empreende o caminho da redenção e a Natureza. O cristianismo fecha hermeticamente a vida íntima da Natureza, não deixa ao homem aproximar-se dela e de certo modo A humilha; este é outro aspecto da grande obra de libertação do espírito humano levada  a cabo pelo cristianismo. Para que o espírito humano não fosse escravo da Natureza teve de bloquear seu acesso a essa vida interior dos espíritos da Natureza. Qualquer retorno do homem à condição do paganismo antigo seria perigosa, levaria consigo o risco de uma nova queda e desembocaria outra vez no terror aos demônios da Natureza; todos estes riscos são reais até que o homem não tenha alcançado certa estatura espiritual, até que não tenha levado a cabo o drama da redenção, até que o homem não seja espiritualmente adulto, e adquira suficiente equilíbrio e firmeza. O cristianismo realizou o processo de libertação do espírito humano separando-o da vida interior da Natureza e a Natureza continuou imersa naquele mundo pagão do qual era necessário distanciar-se. Tudo isso se prolongou durante quase toda  a Idade Média. A vida interior da Natureza aterrorizava o homem, a relação com os espíritos da Natureza era considerada magia negra, o cristão seguia tendo uma atitude de temor diante dela, ao que considerava um cordão umbilical que o atava ao paganismo. O cristianismo trouxe a boa nova da libertação deste terror e desta servidão, declarou uma guerra  implacável, apaixonada, heroica contra a Natureza, dentro e fora do homem, uma guerra ascética que se manifestou sobretudo na impressionante personalidade dos santos. Este virar as costas à Natureza , esta perda das chaves de acesso à sua vida íntima, é uma característica fundamental do período cristão da história que o diferencia da época pré cristã. As consequências de tudo isso são, à primeira vista, paradoxais. O resultado e a consequência do período cristão é uma mecanização da Natureza ainda que, para todo o mundo pagão e para a cultura do mundo antigo, a Natureza fosse um organismo vivo. Para a época cristã a Natureza foi desde sempre terrível, horripilante e suscitava uma sensação de perigo. Isto explica porque o conhecimento da Natureza era tido como algo perigoso, assim como se incentivava a atitude de fuga dela, e a luta espiritual contra ela. Mais tarde, no alvorecer da era moderna, começou a ação técnica exercida sobre a Natureza, a mecanização começou a partir disso, condicionada por uma concepção da  Natureza como algo inerte e não como um organismo vivo. Esta mecanização constitui o segundo ou terceiro resultado da libertação do homem da demonolatria por parte do cristianismo. Este mecanizou a natureza para restituir ao homem a liberdade, para discipliná-lo, para distingui-lo dela e elevá-lo acima dela. Por mais paradoxal que isso pareça, parece-nos claro que isso permitiu uma técnica, justamente em ambientes cristãos. Se o homem está em interação imediata com os espíritos da Natureza e baseia sua vida numa Weltanschauung mitológica, ele não pode transcender a Natureza através de uma atitude cognitiva própria das ciências naturais e da técnica. Se há uma atitude de medo com respeito aos demônios da Natureza não é possível construir-se estradas, instalar telégrafos e linhas telefônicas. Para se trabalhar a Natureza como um mecanismo foi preciso desaparecer da vida humana a sensação de que a Natureza é um imenso organismo vivo cheio de demônios com os quais se pode conectar. A concepção mecanicista do mundo rebelou-se contra o Cristianismo, mas na verdade ela é o resultado espiritual da libertação do homem do jugo dos elementos e demônios da Natureza objetivado pelo Cristianismo. Na medida em que o homem estava imerso na Natureza e estava em comunhão com a vida íntima desta era impossível conhecê-la e dominá-la através da técnica. Isto teve uma influência decisiva sobre o destino humano. O cristianismo libertou o homem do jugo da Natureza, situando-o espiritualmente no centro do universo. O sentimento antropocêntrico da existência era alheio ao homem antigo, pois este sentia que formava parte da Natureza e era inseparável dela. Foi precisamente o cristianismo que trouxe essa sensibilidade  antropocêntrica, a qual se converteu na força motriz fundamental dos novos tempos. Uma vez que essa consciência surgiu da situação central do homem no mundo, situando-o acima da Natureza e tem sua origem no cristianismo, a história não podia tomar outros caminhos diferentes dos que seguiu. Os adversários recentes do cristianismo não são suficientemente conscientes de sua dependência dessa  fonte cristã.

A libertação do homem do jugo da Natureza tinha de levar o homem a se isolar no mundo espiritual interior para ali levar a cabo um combate gigantesco e heroico contra os elementos da Natureza, a fim de superar a escravidão em que vivia com respeito à Natureza inferior e modelar uma personalidade autenticamente livre e humana. Este grande empreendimento, que é fundamental para o destino do homem , foi conduzido pelos santos cristãos. Os grandes ascetas e anacoretas desenvolveram uma luta titânica contra as paixões do mundo e desta forma, levaram a termo o empreendimento de libertar o homem dos elementos inferiores. O homem tinha de volver a espada contra a Natureza para poder forjar uma personalidade humana nova, ligada à aparição do novo Adão já que no mundo antigo prevalecia a imagem do velho Adão, daquele Adão  que através de um ato pré mundano e de dimensão universal havia caído enquanto entidade coletiva no poder da Natureza inferior e de seus elementos. A nova personalidade humana havia de modelar-se conforme o novo Adão, livre de toda servidão aos poderes mortíferos do mundo e aos demônios da natureza inferior. Este trabalho de modelagem do novo Adão abre o período cristão da História, que começa com os primeiros eremitas, continua através do monaquismo medieval e se prolonga ao longo de todos os séculos  que participaram dessa luta incrível na formação da nova personalidade humana. O cristianismo reconheceu pela primeira vez o valor infinito da alma humana, trazendo a consciência de que a alma humana vale mais do que todos os reinos do mundo, pois "de que vale o homem ganhar o mundo todo se vier a perder a sua alma?". Este é um dos fundamentos da doutrina evangélica. A luta contra os elementos da Natureza se converteu em algo fundamental e criou o dualismo cristão entre espírito e natureza. Não se trata aqui de um dualismo ontológico mas de um princípio extraordinariamente dinâmico e ativo. Sem este dualismo, sem esta contraposição entre sujeito agente e o ambiente natural objetivo exterior a ele, com o qual luta e se encontra em conflito, é impossível o dualismo na história. Quando o sujeito está imerso no objeto não estão presentes condições adequadas para uma história verdadeiramente dinâmica.
O destino do mundo antigo antes do advento do cristianismo, tinha que ter um duplo ponto de chegada, dois momentos distintos, cada um dos quais era essencial para construir a História Universal e começar a nova era. O mundo antigo recolhia o mundo em uma unidade, superando todo particularismo. A divisão em Oriente e Ocidente, em numerosos povos e culturas, devia desembocar finalmente em uma integração, na formação de um grande todo universal, espiritual e material. Neste processo de integração teve uma influência decisiva a obra de Alexandre da Macedônia, destinada a promover a união entre Oriente e Ocidente. A integração espiritual começou a tomar forma durante o período helenístico, quando houve a confluência de todas as religiões do Oriente e do Ocidente, período caracterizado por um sincretismo em que se fundiram todos os modelos culturais elaborados pelo mundo antigo. A formação do Império Romano, que teve características de um estado universal, foi o resultado da integração do mundo antigo, o que possibilitou uma história verdadeiramente universal. A história universal da humanidade unificada começa neste período, no qual tem lugar a união entre Oriente e Ocidente. O cristianismo surgiu historicamente e se manifestou neste período em que aconteceu o encontro ecumênico de todas as conquistas culturais do mundo antigo, em que se efetua o contato entre culturas orientais e ocidentais, na qual a cultura helênica e as do oriente passam pelo prisma da cultura romana. Esta unificação do mundo antigo, este sincretismo helenístico, ajudou a criar uma humanidade única, que não tinha sido capaz de forjar antigo espírito hebraico apesar dele ser o berço do Cristianismo. Todo o mundo antigo adoecia de particularismo. O ecumenismo do cristianismo como processo natural da humanidade foi precedido por esta unificação do Oriente e do Ocidente realizada pela cultura helenística e o império romano. O cristianismo nasceu em um povo insignificante, que de modo algum ocupava um posto central na História e em certo momento o que estava em primeiro plano foi o que aconteceu em Roma e depois em Alexandria. Na palestina particularista e isolada ocorreu o fato mais importante da História Universal e que depois haveria de ser reconhecido como central, e não só por cristãos. O que aconteceu em Belém condicionou toda a história universal. Enquanto que em Roma, no Egito e na Grécia se constituía uma unidade universal de povos e culturas, que foram integrados na comunidade ecumênica, em um ponto da Terra aparentemente marginal teve lugar a comunicação suprema do divino, a revelação suprema e a reunificação global de todos os processos que a história antiga fez confluir em um único fluxo universal. Assim foi constituído o novo mundo cristão e começou uma história de dimensões autenticamente universais que era desconhecida do mundo antigo. Este é um dos resultados.
Quanto ao segundo, extraordinariamente estranho e trágico, consistiu no seguinte: o mundo antigo não só havia de chegar a formar um todo através de um processo de integração, mas também teve de entrar em colapso, isto é, tinha que acontecer a ruína do mundo antigo e do paganismo. A grandiosa cultura ligada ao mundo helênico desabou, da mesma maneira que caiu o Estado Romano, o maior do mundo. Esta queda aconteceu uma vez atingido o ecumenismo. O mundo antigo atingiu o seu esplendor enquanto se moveu dentro de seus limites particularistas, fechados ao universal e desmoronou justamente quando se tornou universal, quando se formou o estado universal, quando prosperou a refinada cultura helenística. A nosso entender este é um dos fatos mais centrais da História do Mundo, um fato que nos faz refletir como nenhum outro sobre a natureza do processo histórico e nos faz revisar muitas teorias sobre o progresso. Esta ruína do mundo antigo não teve nada  de casual. Não podemos buscar sua causa apenas nas invasões dos povos bárbaros que destruíram os valores do mundo antigo e inauguraram um período de barbárie, senão também em um certo mal estar interior (que os historiadores se inclinam cada vez mais a admitir) o qual contribuiu para corroer essa cultura em suas próprias raízes e tornou inevitável seu desmoronamento justamente no momento do seu máximo esplendor externo. A queda de Roma do mundo antigo nos ensina duas coisas absolutamente opostas. Nos diz que é inerente à cultura a instabilidade e a fraqueza de todas as coisas e conquistas terrenas, nos recorda uma verdade, a saber, que do ponto de vista da eternidade e do destino eterno, todas as conquistas da cultura terrena (inclusive em sua maior glória e esplendor) são corruptíveis e encerram em si o germe de uma enfermidade mortal; mas, ao mesmo tempo, esta queda, à luz da história de nosso tempo, não só nos ensina que a cultura é mortal, que está submetida ao ciclo do nascimento, da prosperidade e da morte, senão também que a cultura é um princípio de eternidade. Com efeito, é realmente surpreendente o fato de que este grandioso mundo antigo entrasse em colapso e chegasse o tempo da barbárie (que se prolonga ao longo dos séculos VII, VIII e IX), mas não é menos incrível o fato de que a cultura sobreviva ao tempo. Ela penetrou profundamente na vida da Igreja Cristã e não só a cultura helênica que nela penetra com sua arte, filosofia e conquistas; também é influenciada pela cultura romana a qual se acha tão profundamente unida a Igreja Católica. A queda de Roma e do mundo antigo não só representam uma morte, senão uma catástrofe; tudo estava desmoronado na superfície, mas no mais profundo, o princípio último da cultura antiga sobreviveu através dos séculos. O direito romano é algo eternamente vivo; a arte, a filosofia grega e os demais princípios do mundo antigo que formam a base de nossa cultura una e eterna (embora sujeitas a um processo desenvolvido em diferentes fases) são uma realidade permanentemente viva. A ruína do mundo antigo nos ensina, antes de tudo, que as teorias baseadas no progresso linear não possuem qualquer valor; elas não resistem a um escrutínio sério, pois o progresso contínuo não existe. Todos os acontecimentos fundamentais da história desmentem claramente esta teoria. Eduard Meyer, um dos historiadores mais importantes que se ocuparam do mundo antigo, opina que todas as culturas passam por períodos de desenvolvimento, de florescimento culminante, decadência e ruína. Em última análise ele pensa nas antigas culturas grandiosas do mundo que, em comparação a elas, as épocas sucessivas representam apenas uma volta ao passado: por exemplo, a antiga cultura babilônica era tão perfeita que, em muitos aspectos não tem nada a invejar de nossa cultura contemporânea do século XX. Tudo isso parece essencial para uma filosofia da história. Na Grécia houve uma época "iluminada" que se emendou com a crítica destrutiva dos sofistas e que é análoga à época da ilustração que se desenvolve no século XVIII. De acordo com a teoria do progresso linear essa época ilustrada teria de ter triunfado mas ao invés disso vemos que tal época sucede na Grécia a grande reação idealista e mística que se remonta a Sócrates e a Platão. Esta grande reação espiritual contra a "ilustração" racionalista e cética se prolonga ao longo de todo o medievo, ocupa um enorme período histórico de mais de mil anos, e refuta claramente a teoria ilustrada do progresso contínuo. Tudo isso é incompreensível de um ponto de vista ilustrado-progressista. Por que houve no mundo uma reação tão demoradamente longa? Muitos historiadores que se ocuparam com a Grécia, por exemplo, Belloch, sentem antipatia por esta corrente espiritual e vêem nela um movimento reacionário que começa com Platão e continua até o Renascimento. Mas, em suma, por que a evolução ilustrada não continuou? Isso representa um problema muito importante para a filosofia da História.


O cristianismo surgiu durante o florescimento tardio e do refinamento da cultura antiga próprios à época grega. Não tem sentido buscar no cristianismo a ingenuidade característica da religião e do homem da antiguidade. O cristianismo se revela em um período de refinamento cultural e, para nosso conhecimento, este é um dos fatores mais importantes a fim de definirmos as características peculiares do cristianismo. Em si mesmo, o cristianismo não é uma religião naturalista. Se fizéssemos uma classificação das religiões, o cristianismo haveria de definir-se como uma religião não naturalista, o naturalismo entendido como ligado à Natureza e a seus processos misteriosos que se refletem de modo orgânico na alma, senão preferencialmente a uma religião histórico-cultural, na qual o mistério da vida e da divindade se revela através do dualismo da alma separada de toda ingenuidade e de todo nexo com a Natureza. Isto é essencial para definir o cristianismo. Nesta religião tem lugar o encontro e a integração de duas correntes da História Universal e, ao mesmo tempo, se resolve de um modo novo um dos temas centrais e fundamentais da história do mundo, o tema das relações entre Oriente e Ocidente. O cristianismo é o encontro e a fusão das forças espirituais orientais e ocidentais e resulta impossível pensá-lo de outro modo. É a única religião universal que, apesar de ter seu berço imediato no Oriente é antes de tudo uma religião ocidental e reflete em si todas as propriedades específicas do Ocidente. O cristianismo surge quando se vai formando uma humanidade única através do império romano e da cultura helenista, quando Oriente e Ocidente se unem definitivamente. Por isso o cristianismo leva em si o percurso histórico universal sem o qual é impossível uma filosofia da História. Ele oferece o curso da unidade da humanidade e da unidade da Providência divina agindo sobre os destinos históricos na medida em que a nova religião nasce com base na confluência entre Oriente e Ocidente. E o cristianismo transfere o centro de gravidade da história do Oriente para o Ocidente, é o ponto de intersecção dos movimentos globais, indo de leste para oeste , seguindo o caminho do sol, e arrasta consigo a história universal. Isso se desloca definitivamente do Oriente ao Ocidente e os povos do Oriente que haviam escrito as primeiras páginas da História da Humanidade, haviam criado as primeiras grandes culturas, e haviam sido o berço de todas as grandes religiões e culturas, deixam de certo modo o palco da História Universal. O Oriente torna-se cada vez mais estático e a força dinâmica da história é transferida totalmente ao Ocidente. O cristianismo introduz dinamismo na vida dos povos ocidentais. O Oriente se fecha em si mesmo e abandona a arena da História Universal; na medida em que permanece não cristão, perde o contato com a História Universal. Os povos orientais que não aceitam o cristianismo não entram para a corrente da História. Isto confirma mais uma vez e de modo experimental que o cristianismo é a força dinâmica mais importante e que os povos que abandonam o cristianismo e, definitivamente, não o seguem, param de ter história. Isso não significa que o Oriente morreu e nele a vida tornou-se impossível. Em vez disso estamos inclinados a pensar que os povos do Oriente podem retornar ao fluxo da História e realizar dimensões verdadeiramente universais.  A guerra global cujas consequências sofrem pode contribuir para introduzir os povos do Oriente em um novo fluxo da história universal e, talvez, mais uma vez, conduzir à reunificação do Oriente e do Ocidente para além dos limites da cultura européia e , desta forma vivermos algo como um novo 'período helenístico'. Mas o que se refere ao passado, temos que dizer que o Oriente, a partir de certo momento, deixa de ser a força impulsora da História. Quando dizemos Oriente não queremos dizer a Rússia, pois esta não pertence propriamente ao Oriente Genuíno, sendo melhor definida como um agregado sui generis de Oriente e Ocidente. Isto origina a complexidade de seu destino histórico, mas, ao mesmo tempo, outorga ao destino histórico da Rússia um caráter diferente do destino cristão dos povos do Oriente.

Falamos da libertação do homem das entranhas da Natureza, da personalidade humana, do homem como imagem e semelhança de Deus, da submissão primordial do homem aos elementos inferiores da Natureza tal como existia no período pré cristão da História; tudo isso nos leva a concluir que o cristianismo foi o primeiro a abordar conscientemente o problema da pessoa humana, porque só ele abordou a questão de seu destino eterno. Uma abordagem genuína da questão do destino da pessoa humana era impossível e inacessível para o mundo pagão antigo e para o mundo hebreu. O cristianismo reconhece que a natureza humana é espiritual em sua própria origem e que não é possível derivar a pessoa de qualquer raça inferior ou de qualquer contexto não humano. O cristianismo estabelece um vínculo direto entre pessoalidade e a natureza divina (de onde vem a sua origem) e por isso é completamente avesso à concepção naturalista-evolucionista do homem. Enquanto o evolucionismo naturalista considera o homem como um filho do mundo e da natureza e nega a primogenitura espiritual do homem, sua origem superior aristocrática, o cristianismo afirma a originalidade da natureza humana e sua independência em relação aos processos que ocorrem nos elementos inferiores. Isso torna possível, pela primeira vez, a consciência da dignidade superior da pessoa humana. Só no período cristão da História se leva a cabo uma verdadeira elaboração histórica da personalidade humana. Em nosso modo de ver, a personalidade humana foi forjada e reforçada naquele período da história que foi considerado (a partir de um ponto de vista humanista) como desfavorável para a personalidade: a Idade Média. A Idade Média, na época do seu auge, adquiriu solidez e disciplina de duas maneiras distintas: através do monaquismo e da cavalaria. O monge e o cavaleiro foram justamente os modelos do que deve ser uma personalidade verdadeiramente humana, neles a personalidade humana adquiriu uma certificação superior. A pessoa se fortaleceu tanto física quanto espiritualmente e tornou-se independente de forças elementares que pudessem desagregá-la. Neste sentido, não se presta devida atenção para a grande importância que teve na Idade Média a finalidade de se forjar o homem , que, com extraordinária energia, foi erguido em toda sua altura e através de uma atitude criativa, proclamou os seus direitos durante o Renascimento. É necessário enfatizar a importância da Idade Média, que robusteceu a liberdade humana trazendo todas as forças espirituais da personalidade do homem forjado através de modelos do monge e do cavaleiro. Toda a ascética cristã se caracteriza por esta concentração e uso adequado das energias espirituais. As energias espirituais do homem foram reunidas e concentradas interiormente e embora não tivessem a possibilidade de manifestar-se e de florescer com suficiente liberdade, ao menos se conservaram nesse estado de concentração. Aqui temos um dos resultados mais notáveis (e, por outro lado, inesperado) da história medieval. O florescimento criador do Renascimento, bem notório, tornou-se possível na medida em que fora interiormente preparado pela Idade Média. Se o homem não tivesse frequentado a escola ascética que favorecia a economia das energias espirituais, não teria entrado no Renascimento com tanta ousadia e força criadora. Aqui radica o contraste essencial entre o Medievo e a era Moderna. Se o europeu sai hoje da época moderna esgotado e carente de energia, ele saiu da Idade Média com um imenso fluxo de energias virginalmente intactas e disciplinadas na escola da ascética. O tipo do monge e do cavaleiro precedem o Renascimento e sem eles a personalidade humana jamais poderia ter alcançado uma estatura conveniente. 

Agora, como o fim da Idade Média levou ao nascimento de uma nova era histórica, o Renascimento e o Humanismo, isso nos dá a entender que a era medieval não soube responder as questões que ela própria levantou, que a ideia medieval do Reino de Deus não havia sido realizada e que este fracasso levou o homem do Renascimento e do Humanismo a uma atitude  de rebeldia. A importantíssima realização do medievo não só consiste em haver manifestado sua ideia, senão também em ter descoberto suas contradições internas e seu caráter irrealizável. Era necessário que a Idade Média chegasse a este fracasso; a teocracia não foi realizada e tampouco podia ser implantada pela força. O resultado positivo do medievo foi o de reunir as forças espirituais do homem com vistas a criar uma nova história e não de alcançar  as metas que se havia proposto. Ademais, é bastante frequente que o resultado de um movimento histórico seja completamente distinto daquele que foi planejado por seus criadores. Assim, por exemplo, o resultado mais importante do processo de formação do Império Romano não foi o império em si, que desabou e quedou em ruínas, senão a unificação da humanidade, que constituiu o fundamento da Igreja Cristã Universal. Em nosso entender, o resultado positivo do medievo foi o de haver forjado a personalidade do homem para o período histórico seguinte, tudo isso prescindindo dos propósitos e intenções dos homens medievais, os quais pensavam na teocracia ou no feudalismo (que fracassaram de igual maneira) ou nas formas passageiras da cavalaria que foram varridas pela história moderna (não confundir-se aqui com o cavalheirismo espiritual, de ordem eterna). De todos os modos, no mesmo marco da Idade Média, nos séculos XIII e XIV, já nos encontramos com o Renascimento Cristão em seu retorno à formas antigas; e a escolástica medieval representou na filosofia a vitória de padrões antigos e Dante constitui o apogeu deste avivamento. 

domingo, 29 de setembro de 2013

A antropologia dos Pais [da Igreja]

O texto a seguir é o capítulo IV do livro de Paul Evdokimov "El conocimento de Dios en la tradición oriental",Madrid, Ediciones Paulinas, (ano da edição ?), famoso teólogo ortodoxo russo, nascido em 1901 e que faleceu em 1970.
Esse texto representa boa introdução à antropologia teológica da Igreja Ortodoxa. Espero que apreciem.


A antropologia dos Pais
(Paul Evdokimov)

1) A dimensão transcendente da existência humana


São Fócio, patriarca de Constantinopla, transmite bem a inspiração da tradição patrística de advertir que está em sua própria estrutura o homem abordar "o enigma da teologia". Criado à imagem de Deus, o homem torna-se uma teologia viva em "lugar teológico" por excelência.
Os pais definem o tipo humano partindo da Imago Dei, do divino arquétipo: com este elemento divino da natureza humana estruturam a essência do homem. Assim a antropologia alcança o nível de uma teologia do homem. Esta, em sua amplitude, se remonta até o estado anterior ao pecado original. Mesmo após a queda, o estado edênico, o primeiro destino não pesa menos sobre o destino terrestre e a vocação do homem. A escatologia é uma dimensão do tempo inerente à história; ela permite o conhecimento místico das primeiras e últimas coisas e, portanto, pressupõe certa imanência do paraíso e do reino de Deus. "O reino de Deus está próximo, está no meio de vós", diz o Evangelho. O paraíso se fez novamente acessível ao homem, diz São Gregório de Nissa. Segundo o ofício da Natividade, o anjo com a espada flamejante se afasta da árvore da vida cujos frutos - a vida eterna- se oferecem desde então na Eucaristia. À saudade inata de imortalidade e paraíso, sempre normativos de nossa verdadeira natureza, corresponde a presença real do Reino. O tempo litúrgico já é a eternidade e o espaço sagrado do templo, liturgicamente orientado, é já o Oriente do reino. A eternidade não é nem anterior nem posterior ao tempo. A "nova criatura" transcende a história para o advento das condições do Reino, manifestadas já aqui embaixo, na existência terrestre dos santos. Um encontro ainda que furtivo com um santo já é uma janela aberta sobre o Reino; por esta abertura o sol nos inunda. "A alma cristã é o retorno ao paraíso", dizem os Pais, e a história está "à espera das almas ante as portas do Reino". A parte do homem, sua participação na obra de salvação, terá sempre seu lado antinômico. Por uma parte, "se Deus considerasse os méritos, ninguém entraria no Reino", diz Marcos, o Eremita; e, por outra parte, segundo o adágio patrístico: "Deus pode tudo, menos coagir alguém para que O ame". A verdade não pode ser senão um chamado, um convite que abarca uma potencial resposta negativa. A fé é esse sim sagrado e profundo que o homem pronuncia na fonte do seu ser, e então o "homem é justificado pela fé". (Romanos 3:28). No amor o homem coloca todo o seu ser livremente ao objeto de sua fé. Mas desde que abandonou o topo do mistério , a razão lança a rede deformada de sua "luz natural" . Já o prefixo "pre " na presciência e predestinação aprisiona a sabedoria de Deus nas categorias de tempo e reduz a Encarnação a soteriologia, a um meio de resgate.
No entanto, a razão profunda para a Encarnação não vem do homem, mas de Deus, de seu desejo de fazer-se homem e de fazer de sua humanidade uma Teofania consubstancial a todos, sua morada trinitária: "Viremos a ele e faremos nele morada" (João 14, 23). De acordo com Metódio do Olimpo: "O Verbo caiu para fazer-se homem antes dos séculos". A grande síntese de Máximo Confessor estende a linha indicada por Irineu e Atanásio: "Deus criou o mundo para fazer-se homem nele e para que o homem se fizesse nele deus por graça e participasse das condições da existência divina... Em seu conselho, Deus decide unir-se com o ser humano para deificá-lo", o que não tem medida comum com apenas o perdão e a salvação. Acima da curva possível da queda, Deus esculpiu o rosto humano mirando em sua Sabedoria o Rosto Eterno de Cristo (Colossenses 1: 15.., 1 Coríntios, 15, 47, Jo, 3, 11). A propósito da Encarnação, o Credo Niceno confessa: "Para nós, homens, e para nossa salvação". Padre Sérgio Bulgakov precisou:  "para a nossa salvação" significa redenção e "para nós homens" deificação. Isso, de acordo com Paulo, é "uma sabedoria divina, misteriosa, oculta, que Deus destinou para nossa glória antes dos tempos eternos" (1 Cor., 2, 7). A economia da Glória está além da escolha angelical ou humana, Lúcifer ou Adão.
A expiação e o julgamento respondem à queda, o reino e a deificação à Encarnação. A Igreja oferece o organismo da salvação, os meios de santificação, mas também a salvação mesma, a presença do reino. A recapitulação em Cristo no céu e na terra é universal e não exclui ninguém; no entanto, seu término é um mistério transcendente do Pai, que não permite pré julgamento: na melhor das hipóteses, uma esperança aberta...

2) A constituição do ser humano

De acordo com a Bíblia, a alma dá vida ao corpo, o faz "alma vivente" e o espírito pneumatiza todo o ser humano. O corporal e o psíquico existem um no outro, regido cada um por suas próprias leis; o espiritual não é a terceira esfera, senão o princípio de qualificação que se expressa através do psíquico e do carnal e os faz espirituais. Segundo as palavras de Santo Agostinho, o homem pode fazer-se carnal até em seu espírito, pode fazer-se espiritual até em sua carne. O espírito é este ponto avançado que se comunica com o que está mais além e que participa dele.
Demasiado amplo em sua significação, o espírito não pode servir de centro hipostático do ser humano. Há que buscá-lo na noção bíblica de "coração". De acordo com os judeus, você pensa com o coração, pois integra todos os poderes do espírito humano. É o centro radiante, mas permanece escondido em suas profundezas misteriosas.
Meus sentimentos, meus pensamentos, minhas ações, minha consciência me pertencem, eles são meus e eu tenho consciência; mas o que está muito além do "meu" é transcendente a suas próprias manifestações. Aqui não se trata do "eu empírico", cognoscível, senão do espiritual que escapa a toda investigação. Esta é a noção limite, centro da totalidade que Jung chama de "Selbst", o uno mesmo. Só a intuição mística o descobre e só o símbolo do coração o designa. "Quem pode conhecer o coração?", pergunta Jeremias que o responde instantaneamente: "Só Deus sonda o coração". Também São Gregório de Nissa sublinha essa profundidade misteriosa: "Nossa natureza espiritual existe segundo a imagem do Criador; se parece com o que está acima dela (seu arquétipo divino), na incognoscibilidade de si mesma, manifesta o selo do inacessível".
A presença de Deus se manifesta "nos espaços ou pastos do coração" e a este nível se situa a pessoa. O "personalismo" filosófico jamais alcança uma definição satisfatória da pessoa humana. A única luz vem do dogma trinitário, porque o homem em sua estrutura reflete o divino. Cada pessoa divina é uma doação subsistindo no Outro e na "circunspecção" dos 3 únicos. Falando estritamente, só em Deus existe a pessoa e só Deus personaliza toda pessoa humana, situando-a em sua verdade.
A hipóstase ou pessoa em Deus é determinada por suas relações, mas também por tudo o que excede essas relações: o Uno em si. Assim também a pessoa humana escapa a toda definição racional e não pode ser senão captada por meio de uma apreensão intuitiva ou revelação mística. Também por ela o homem é o único com o poder de rebaixar-se a si mesmo para o infinito que é Deus. A pessoa se faz transcendendo-se para Deus. A este nível, a pessoa enquanto hipóstase não nos pertence em propriedade: a recebemos na comunhão com Deus; é a "identidade pela Graça", segundo expressão de São Máximo. A hipóstase do verbo é o lugar da união do divino e do humano. A pessoa de todo ser humano se faz "hipóstase", bem como a imagem do Cristo é o lugar de comunhão entre Deus e o homem, quando "enhipostasia" a existência teândrica "divino-humana". O homem, diz São Basílio, "é uma criatura condenada a ser deus, o que significa tomar posse de seu ser deificado. Segundo São Máximo, a pessoa é chamada a unir pelo amor a natureza criada com a natureza incriada" (as energias deificantes).
"Deus honrou ao homem concedendo-lhe a liberdade", por isso, "o Espírito não engendra nenhuma vontade que lhe resista. Não transforma por divinização senão o que quer", diz São Máximo. A angústia que o espírito humano pode sentir vem do arbitrário sempre possível que o persegue, porque pode recusar a vida, dizer não à existência. O homem está suspenso a cada momento entre o ser que tem a vocação de realizar algo ou voltar ao nada de onde foi tirado, este é o risco grande e nobre de toda existência e a tensão suprema da esperança: "Sendo capaz o poder divino de inventar uma esperança onde não há esperança e um caminho no impossível", diz magnificamente São Gregório de Nissa. O impossível é essa tensão entre o normativo da imagem de Deus e o real decaído.
O homem é um projeto vivente de Deus. ele deve decifrá-lo e construir livremente seu destino. Assim, a existência é a tensão criadora para descobrir e viver a própria verdade, que então se faz vida. "Não conheço a verdade senão quando se faz vida em mim", advertia profundamente Kierkegaard.
"Já não os chamo servos, chamo amigos" (João 15,15). Acima da ética dos escravos e mercenários, o Evangelho coloca a "ética dos amigos de Deus". Nossa liberdade e, por conseguinte, nosso livre "agir humano" se convertem na verdadeira liberdade quando se põem dentro do "agir" de Deus: a verdade é o que nos faz verdadeiramente livres" (João 8,32).
A Graça pede secretamente a cada alma, sem jamais coagi-la. Em resposta, a fé não é uma submissão cega, nem simples adesão, senão fidelidade consciente e total da pessoa à Pessoa. Estas são as relações nupciais, a Bíblia se serve sempre delas para descrever as relações entre Deus e o homem. Ao dizer o "fiat", o "sim" me identifico com o ser amado. Deus pede ao homem a realização da vontade do Pai, pois esta é a vontade própria do homem. Este é o sentido do "sede perfeitos como Vosso Pai celeste é perfeito".
Diante de Deus a vontade humana proclama "Seja feita a Tua Vontade". Mas podemos dizer "sim", como podemos dizer "não" à sua vontade, o nosso outro ressoa totalmente, porque ressoa livremente, já que podemos dizer não. É preciso, pois, que este sim seja engendrado no mais profundo de nosso ser; por isso a que pronuncia em nome de todos é uma Virgem, nova Eva, mãe de todos os viventes e fonte vivificante. Deus não dá ordens, mas lança convites, chama: "Escuta Israel", ou "se queres ser perfeito". Ao decreto de um tirano responde uma resistência surda; o convite do Senhor do banquete, a aceitação gozosa do "que tem ouvidos..." . Nos vasos de barro, Deus depositou sua liberdade, sua imagem. Se o fracasso é possível, se no ato criador se inclui a hipótese da ruína, é que a liberdade dos "deuses", o seu amor livre, é a própria essência da pessoa humana.
A palavra latina "persona", a mesma que "prosopon" em grego, que dizer "máscara". Ensina a ausência de uma ordem humana autônoma, porque não faz parte do ser ou nada. Nesta participação do homem, ele pode verter-se em semelhança de Deus, seu ícone, ou dissimulando-se, apresentar o sorriso demoníaco de um macaco de Deus. São Gregório de Nissa diz claramente: "A humanidade se compõe de homens com face de anjo e de homens que carregam a marca da besta". Assim o homem pode reacender a chama do amor, ou o fogo da geena; pode converter seu sim em encontros infinitos; pode também com seu não romper seu ser em separações infernais. Segundo São João (1 João 3,2) , no século futuro seremos semelhantes a Ele, semelhantes a Ele em sua comunhão perfeita do divino humano. O homem foi criado à imagem de Deus com vistas a esta comunhão. Os postulados do conhecimento de Deus se encontram, pois, na estrutura mesma do seu ser.

3) A imagem e semelhança de Deus

Todos os antropólogos, crentes e não crentes, concordam com a definição de homem: um ser que aspira ser superado, um ser que tende ao que lhe é maior. Seria preciso um São Paulo para decifrar esse "Deus desconhecido", para dar nome a esta aspiração fundamental , cuja fonte é a imago Dei. Essa "imagem" para os pais da Igreja não é uma ideia reguladora ou instrumental senão o princípio constitutivo do ser humano. O pecado, segundo São João (1 João 4,6) é a "anomia", a desordem, transgressão do limite normativo constitutivo do ser humano, confusão profunda do fundamento ontológico da natureza. A perversão reclama o ato terapêutico, reconstrução da estrutura normativa. A "catarse ética", purificação das paixões, desemboca na "catarse ontológica", cura terapêutica da natureza. Se trata do restabelecimento da forma primeira, da restauração da imagem arquetípica.
Santo Atanásio recolhe a afirmação de Santo Irineu e formula a regra de ouro da tradição: "Deus se fez homem para que o homem se fizesse deus". Ele insiste no caráter ontológico da participação do divino através da imagem. A imagem é constitutiva a ponto de "criação" significar "participação": o homem é criado como um ser participante, predestinado em sua própria estrutura à iluminação de seu "nous", que lhe confere a capacidade inata da teognosia, do conhecimento de Deus. Também São Basílio diz: "Como em um microcosmo, em ti verás a marca da sabedoria divina". Vê-se o entendimento em sua intencionalidade original, orientada para Deus: "Por nossa própria natureza possuímos o desejo ardente do belo... tudo aspira a Deus". São Gregório de Nazianzo, falando do sopro divino, fala que o carismático irradia a imagem. Assim o homem não só está ordenado moralmente ao divino, senão que é da raça divina, como diz São Paulo (Atos 17,29). Segundo São Gregório de Nissa, "o homem está relacionado com Deus", é divino por Natureza, o que predestina a "theosis", a "deificação", a comunhão mais íntima com Deus. Se a inteligência, sabedoria, amor são a imagem das mesmas realidades em Deus, da imagem de Deus vem sobretudo o poder de determinar-se livremente por si mesmo. A função axiológica do juízo, da apreciação, do discernimento, faz do homem o ser que reina sobre a natureza, verbo cósmico que participa das condições da vida divina. Entre Deus e o homem deificado a diferença é esta: "O divino é incriado, ainda que o homem exista por criação". Sobre este plano universal, em função da imagem, o cristianismo se define como "Imitação da Natureza de Deus", a multitude das hipóstases humanas unidas na mesma natureza humana.
O cultivo da atenção espiritual entre os ascetas faz dela uma verdadeira arte de ver todo o ser humano como "imagem de Deus". "Um monge perfeito", diz Nilo do Sinai, "estimará depois de Deus a todos os homens como Deus mesmo". A tradição dos grandes mestres da vida espiritual surpreende por sua tonalidade de alegria e por sua apreciação máxima do homem. Terapeutas práticos, não possuem necessidade de ensinar nada sobre a amplitude da perversão, senão que sua arte de cardiognose e sua penetração nas profundidades da alma fazem ver a "nova criatura" revestida completamente da forma divina. Um tropário do ofício dos defuntos diz: "Levo os estigmas de minha iniquidade, mas sou a imagem de tua glória inefável".
Criada à imagem de Deus a verdadeira natureza é boa. Por isso a redenção devolve à natureza curada, não a sobrenatureza, senão a seu estado inicial, sua verdade "sobrenaturalmente natural".
Visitar o imenso campo do pensamento patrístico, infinitamente rico e diferenciado, tem-se a impressão que o mesmo evita qualquer sistematização, para salvaguardar toda flexibilidade assombrosa. No entanto, podemos tirar algumas conclusões. Em primeiro lugar, temos de pôr de lado qualquer noção substancialista de imagem. Esta não é depositada em nós como parte de nosso ser, senão que a totalidade do ser humano é criada, esculpida, modelada "à imagem de Deus". A expressão primeira da imagem consiste na estrutura hierárquica do homem, com a vida espiritual no centro. É o primado ontológico da vida do espírito que condiciona a aspiração fundamental ao espiritual , ao Infinito e ao Absoluto. É o impulso dinâmico de todo o nosso ser para o Arquétipo Divino, aspiração irresistível para Deus. É o eros humano tendendo ao Eros Divino, sede insaciável, densidade do desejo de Deus, como expressa admiravelmente São Gregório de Nazianzo: "Vivo, falo e canto para ti..."
Em resumo, cada faculdade do espírito humano reflete a imagem (conhecimento, liberdade, amor, criação), e o todo está focado no espiritual do qual é próprio superar-se para mergulhar no oceano do divino e encontrar ali o apaziguamento de sua nostalgia. Todo limite  contém um mais além, sua própria transcendência; por isso a alma não pode descansar senão no Infinito Divino. É a "epectasis", tensão do ícone para seu Arquétipo. "Por meio da imagem, diz São Macário, a Verdade lança o homem em perseguição". Em nosso desejo de Deus descobrimos já sua presença, porque "o amor de Deus é sempre operante" diz São Gregório de Nissa.


4) A diferença entre a imagem e a semelhança

Para o gênio hebraico, sempre concreto, imagem-tselem tem um sentido muito forte. A proibição de imagens esculpidas pela lei é explicada pelo significado dinâmico e realista da imagem: como o nome, suscita a presença do que representa.  "Demouth", que se traduz por similitude, semelhança, nos incita a considerar-se como outro. Ela pode ser comparada com a noção de "Schaliach": o apóstolo de um homem é como um outro de si mesmo.
A "imagem" é por excelência toda sagrada, não pode sofrer qualquer alteração. Mas ela pode ser reduzida ao silêncio e tornar-se ineficaz pela modificação das condições ontológicas. A imagem, fundamento objetivo, não pode manifestar-se senão na semelhança subjetiva; a queda a fez radicalmente inacessível às forças naturais do homem. Sem estar pervertida, a imagem se fez inoperante. São Gregório Palamas precisa a tradição: "Por sermos à imagem, somos superiores aos anjos; mas inferiores na semelhança por sermos instáveis, depois da queda, rejeitamos a semelhança, mas não perdermos o ser à imagem". Cristo devolve ao homem o poder de agir. Os sacramentos do batismo e da unção crismal restauram a "semelhança no ato", o que libera  a imagem cuja irradiação se faz perceptível nos santos e nas crianças. Graças à imagem o homem sempre conservou a liberdade de opção. Ainda no tempo da Antiga Aliança, o desejo de bem subsistia, sem que, no entanto, o homem pudesse atualizar em sua vida. Em sua Teologia da Graça, os Padres distinguem claramente entre o "Livre Arbítrio de intenção" e o "Livre Arbítrio do ato". Afirmam a plena liberdade do desejo de ser salvo, a sede da cura, a capacidade de formular o "fiat". Depois da Encarnação, a graça atualiza a deiformidade virtual. "Ser criado à imagem de Deus" se converte em "existir na imagem de Deus". Desde então, como diz São Máximo, tem-se duas asas para se chegar ao céu, à liberdade e à graça. "Em qualquer esforço da vontade a Graça responde para cumpri-la. Deus faz tudo em nós, a gnose, a vitória, a sabedoria, a bondade e a virtude sem que tenhamos de contribuir com nada, senão apenas com a disposição da vontade; mas esta boa disposição da vontade é um ato absolutamente livre que coloca o agir humano dentro do agir divino. A "virtude" é essa disposição que desencadeia a ação da Graça a fazer atos sinérgicos. Em um sentido, o sentido do homem é já operante, porque responde ao desejo de Deus e assim atrai a vinda da Graça. Este é todo o papel imenso do "fiat" da Virgem. A Anunciação é como uma pergunta que Deus dirige à humanidade: tens sede de salvação, queres verdadeiramente levar em tuas entranhas e engendrar a teu próprio Salvador? E da parte de todos a Virgem diz Sim. Este sim é a condição objetiva da Encarnação; o Verbo não podia forçar a Natureza  Humana; a Virgem se oferece livremente da parte de todos.
Para os Padres, um ser não amadurece senão pelo Espírito Santo, isto ocorre quando é efetivamente a imagem que se parece com Deus. Um santo é chamado liturgicamente "semelhante". A imagem constitutiva e normativa, em sua função de deiformidade, torna reais as palavras: "Sede perfeitos como Vosso Pai celestial é Perfeito". A cristologia ensina que em Cristo "os filhos no Filho" são realmente filhos no Pai "semelhantes ao filho". São Gregório de Nissa enfatiza o papel da imagem: "para participar de Deus é indispensável possuir no seu ser algo correspondente ao participado". O "Deus é amor" corresponde ao "amo ergo sum" do homem. Calixto, na "Filocalia" diz: "A coisa mais importante que acontece entre Deus e a alma humana é amar e ser amado".
Assim, a antropologia dos Padres e sua noção da imagem mostram ao ser humano deiforme em sua própria estrutura que ele está destinado à comunhão deificante capaz de conhecer a Deus à medida da capacidade de cada um. Como escreve um mestre da vida espiritual contemporâneo: "Deus se dá aos homens de acordo com a sua sede. Aos que não podem beber  mais, não dá mais que uma gota. Mas Ele gostaria de dar torrentes, para que, por sua vez, os cristãos pudessem saciar a sede do mundo."

sábado, 26 de janeiro de 2013

Dostoiévski e a psicologia

O texto a seguir, que será postado aos poucos, à medida em que estiver sendo traduzido por mim do inglês, é de Robert L. Belknap, e faz parte do Cambridge Companion to Dostoievskii, Cambridge University Press, 2002, páginas 131 a 147.

Dostoiévski e a psicologia

O pano de fundo psicológico de Dostoiévski


Na época de Dostoiévski, o limite entre ciência e filosofia era tão indistinto quanto foi antes de Sócrates, e o estudo da psique misturou-se inseparavelmente com aquele da religião, da política e com toda a natureza. Como um homem de seu tempo, Dostoiévski conhecia uma série de sistemas psicológicos: alguns entraram em seu imaginário e em sua consciência cultural; alguns moldaram a maneira como ele descreveu seus personagens; a luta entre dois desses sistemas interagiu com suas ideias sociais mais básicas. Ele conhecia a teria da Renascença dos quatro humores, por exemplo, que atribuiu ao caráter humano, comportamento e estado da mente o equilíbrio ou desequilíbrio dos quatro fluidos no corpo: cólera, fleuma, bílis e bílis negra, que torna os homens coléricos, fleumáticos, irritáveis (biliosos) ou melancólicos (atrabiliários), o que pode diretamente ou indiretamente explicar porque o fígado do herói é descrito como doente no início das Memórias do Subsolo (v, 99; Pt I, Sec. I). Dostoiévski tinha também tomado contado com a antiga ciência da fisionomia, que descobriu o caráter nas características faciais, e a teoria popular da frenologia de Franz Joseph Gall (1758-1828), que traçava nosso caráter à autonomia do cérebro refletido nas saliências ou marcado nas regiões do crânio.  Ele conhecia a teoria pitagórica e asiática da transmigração das almas, e a teoria de Platão da divisão tripartite da alma, com a razão, a paixão e o apetite competindo pelo controle. Mas, como muitos de seus contemporâneos, ele extraiu sua doutrina psicológica central de duas grandes tradições, uma milenar, e a outra crescendo diretamente do pensamento do século XVIII: a tradição dos neurologistas e aquela dos alienistas.

Filosoficamente, os neurologistas eram materialistas, como Leucipo, Demócrito e os antigos epicuristas, mas estes antigos tinham levado o materialismo muito mais longe do que sua contraparte moderna, já que acreditavam que as percepções e ideias mesmas eram atualmente feita de átomos voando no mundo e retendo seu arranjo até que acertassem, enquanto que o filósofo do século dezoito Diderot acreditava que percepção e consciência residiam em nossos nervos ou em suas atividades. Em seu famoso Discurso com D'Alembert , Diderot compara os poderes associativos da mente com a ressonância harmônica que faz certas cordas de instrumento e não outras vibrarem quando uma determinada corda foi atingida. Os positivistas do século XIX eram mais ingênuos e tentaram compreender esta metáfora, com seus microscópios traçaram os axônios em torno do corpo e suas cargas elétricas pela contração dos músculos. Os filósofos admitiram que eles mesmos não tinha visto ainda os nervos vibrarem, mas acreditavam  que a ciência em breve reduziria toda a mente humana a uma coleção de vibrações observáveis. Claude Bernard (1813-78), que conduziu os mais famosos experimentos em sapos e outros animais, também escreveu as mais eloquentes exposições do método científico como foi codificado no pensamento positivista. O expoente russo mais influente desta abordagem neurológica dos trabalhos da mente nunca existiu: Turgenev Bazarov pode ter sido ficcional, mas o 'niilismo' que ele propôs formou o entendimento e as atitudes das gerações que seguiram a aparição de Pais e Filhos em 1862. Entre os cientistas verdadeiros, Ivan Sechenov (1829-1905) foi o mais proeminente na geração de Dostoiévski, e seu seguidor Ivan Pavlov (1849-1936) cria a cena para todo o movimento behaviorista da psicologia mais recente.

Filosoficamente, Dostoiévski rejeitou esta psicologia neurológica, juntamente com as variedades de niilismo, racionalismo, positivismo, cientificismo, ateísmo, socialismo, internacionalismo e feminismo que os materialistas do tempo tendiam a favor, a despeito da sua curiosidade acerca de sua própria epilepsia e sobre as teorias de seus inimigos ideológicos o manterem alerta quanto ao desenvolvimento médico na área neurológica (i).  Nos Irmãos Karamazov, o sarcasmo grosseiro de Dimitri desafoga certa impaciência para a complacência simplista da psicologia positivista que ele ouviu de Raktin, o seminarista ingênuo:

"Eu sinto pena de Deus"
"Como você pode sentir pena de Deus?"
"Imagine só: nos nervos, na cabeça, isto é, no cérebro há estes nervos (para o inferno com eles!)... há estes tipos de caudas - os nervos têm estas caudas, e, tão logo se mexam ... isto é, eu olho algo com meus olhos,como isto por exemplo, então eles se mexem, estas caudas... e é por meio disso que  eu percebo, então penso que é por conta destas caudas que existem, e não por causa da alma ou porque eu tenha algum tipo de Imagem e Semelhança. Isso tudo é muito estúpido" (XV, 28; BK II, Sec. 4).  

Dostoiévski sentiu-se muito próximo das práticas curandeiras para doenças psíquicas, frequentemente chamados de alienistas no século XIX. Sua tradição também tinha suas raízes mais próximas no século XVIII, mas não era totalmente respeitável. A ideia do 'magnetismo animal' foi popularizada em toda Europa por Friederich Anton Mesmer (1733- 1815), que foi ou uma fraude consciente ou um entusiasta que se auto proclamava. Ele afirmou ter técnicas para controlar um fluido magnético que lembra o trabalho dos imãs, de acordo com os físicos daquele tempo, mas o fluido de Mesmer trabalhou em plantas e animais. Ele realizou sessões onde as pessoas hipnotizadas, às vezes produzindo curas certificáveis. No século XIX, seus sucessores, trabalhando na Escócia, Bélgica e em outros lugares, rejeitaram a ideia de um fluido magnético mas exploraram o fenômeno do sonho hipnótico, frequentemente chamado de sonambulismo naquele tempo. Em 1830 doutores descreveram ter amputado uma perna sob anestesia hipnótica e depois acordar o paciente, que perguntou quando iriam operar. Hipnotizadores exploraram sonhos, alucinações, memórias ocultas, ações aberrantes, e usaram o conceito de inconsciente para explicar comportamentos doentios e estranhos. Quando Sofia Kovalevskaia acusou Dostoiévski de copiar Alesha Karamazov do herói da história 'Mikhail' de sua irmã Anna Korvinkrukovskaia, que ele tinha publicado em seu jornal Época, ele bateu na testa e disse, 'Você está certa, mas foi completamente inconsciente'. Os periódicos russos frequentemente continham artigos sobre o progresso científico deste ramo da psicologia, mas Dostoiévski dificilmente teria necessidade de ler os cientistas; seus autores favoritos já tinham assimilado o sensacionalismo assustador do assunto. E. T. A. Hoffmann, Dumas, Dickens, Edgar Allan Poe e os novelistas góticos ingleses todos usaram a tradição hipnótica para formar seus enredos, seu imaginário e as relações entre seus personagens. O terrificante olhar fixo de Murin em The Landlady de Dostoiévski, ou de Rogozin em O Idiota, ou de Stavrogin em Os Demônios não necessitou vir diretamente do olhar fixo descrito ou praticado por qualquer hipnotizador; ele estava na atmosfera literária de Dostoiévski. O Duplo de Dostoiévski é a primeira descrição de um homem se desintegrando rumo à loucura, e de um doutor tentando tratá-lo, mas a série inteira das histórias de Petesburgo, que ele escreveu no final dos anos 1840, lida com personagens que parecem precisar de ajuda psicológica, cada um com um diferente conjunto de sintomas, como se Dostoiévski estivesse explorando o mundo da psicopatologia de uma maneira científica. Em O Duplo e em outras histórias anteriores, mas também no trabalho maduro de Dostoiévski, muito da psicopatologia segue a sintomatologia tradicional de seu próprio tempo: a inabilidade para ver o todo, o foco em uma estrela, um botão, um conceito único; a atribuição de querer coisas inanimadas; a atitude fora das posições teóricas; a geração e interação com um caráter não existente, frequentemente incorporando alguns componentes da identidade doentia da pessoa; o obscurecimento da linha entre fantasia e realidade; e finalmente a perda completa de contato com a realidade

Perto do fim de sua carreira, quando Dostoiévski procurou descrever a alucinação febril de Ivan Karamazov acerca do mal, ele fez seu texto como um alienista, um médico que não se opõe tanto ou ignora as doutrinas dos neurologistas, da mesma forma, por outro lado, Bazarov ignorou o pano de fundo intelectual de curandeiros como seu pai. Dostoiévski cresceu em um hospital de caridade e compartilhou mais tarde um alojamento com um doutor, e sua simpatia estava muito mais próxima aos curandeiros do que às investigações científicas que estavam transformando a psicologia em sua época. Mas diferente de Bazarov ou dos alienistas, ele não ignorou também estas duas escolas de psicologia adversárias. Sua lista de interesses incluiria frequentemente os nomes de Carl Gustav Carus (1789-1869), George Henry Lewes (1817-78) e outros exploradores da psique. Dostoiévski foi mais parecido com seus contemporâneos, Jean-Martin Charcot (1825-1869), que usou tanto hipnotismo e neurologia em Salpêtrie em Paris para produzir a maior síntese destas duas escolas de psicologia. Quando o estudante de Charcot, Freud, passou a gerar um dos principais sistemas psicológicos do século vinte, ele expressou sua dívida não apenas com relação aos seus mentores médicos, mas também aos insights de Dostoiévski, provavelmente percebendo que ambos tinham os mesmos fundamentos intelectuais.

O romance psicológico

O intelecto de Dostoiévski operou novelisticamente de longe bem melhor do que sistematicamente. Nas investigações psicológicas, como nas políticas, religiosas, educacionais, entre outras, seus escritos jornalísticos contribuíram para nosso pensamento em primeiro lugar como anotações ou notas de rodapé de suas ficções, não como exposição de um corpo coerente de raciocínio. O romance psicológico tem um rico passado nos trabalhos acerca dos séculos XVII e XVIII de Mme de Lafayette, Abbé Prévost, Samuel Richardson, Jean-Jacques Rousseau e muitos outros, mas ele prossegue sendo desinventado por ideólogos e reinventado por seus oponentes, por conta das sutilezas da psicologia que desafia a maioria das ideologias. No início de 1860 o O que é para ser feito? de Chernyshevskii prendeu o olhar público. Dostoiévski reagiu contra a política utópica e utilitarista deste romance, mas ele também reagiu contra novelisticamente. Consideremos a cena onde o narrador de Chernyshevskii pergunta que tipo de pessoa é o seu herói Lopakhin, e responde que ele é o tipo de pessoa que, empobrecido e vestido em trapos, se recusa a dar passagem a um oficial dominador e cheio de auto-satisfação que ele encontra caminhando pela rua. Ao invés disso, Lopakhin toma o homem, lança-o em uma vala enlameada e ameaça-o, em seguida puxa-o, comporta-se como se o homem tivesse tido um acidente e segue neste caminho. Novelisticamente, Dostoiévski reagiu iradamente contra o fato que Lopakhin preenchia as necessidades de uma política igualitária de Chernyshevskii e as teorias da dignidade humana universal, sem nenhuma motivação interna ou psíquica. Ele admirou-se do tipo de ser humano que surgiria nos tempos modernos preocupado em defender seu direito de passagem na calçada ou preocupado com seu traje. Robin Hood no Merrie Inglaterra, ou Tybalt na feira de Verona, podem cuidar de tais questões, mas um russo do século dezenove que se preocupasse tanto com sua dignidade soaria muito estranho. Assim Dostoiévski inventou uma psicologia para o herói de Chernyshevskii: um homem tão insignificante que tendia a ser ignorado, e tão inseguro com relação a tudo que constantemente e ofensivamente necessitava de atenção. O homem do subsolo desafia a doutrina de Chernyshevskii em vários sentidos, mas a infantilidade da psicologia do primeiro desafia toda a pretensão de se escrever uma novela feita de personagens exemplares e de ações exemplares, mas nada disso Dostoiévski considera ser uma vida interior. Pois o homem do subsolo, dando lugar à rua, adquire uma enormidade cuja morbidez chama a atenção da falta de qualquer tipo de psicologia em  Lopakhin.

Chernyshevskii pode ignorar a psique e isolar os motivos sociais de seus heróis, mas Dostoiévski não podia ignorar o social; ele percebera que muitas de nossas ações emergem da ação recíproca entre nossa identidade social e psicológica, mas como um romancista ele descobriu vários sentidos em explorar a psique isolada do social. O homem do subsolo teoriza sobre o determinismo e sua implicação de que nossas ações tenham uma origem inteiramente externa, de que nós apenas reagimos como teclas de piano, tão previsivelmente quanto logaritmos, mas ele levou em consideração a constatação de que na realidade nós frequentemente agimos contrariamente a nossos interesses externos, ou os ignoramos completamente. Essa constatação da gratuidade abre um espaço onde o romancista pode explorar a psique como pura ação, diluída pela reação. Na linguagem do ensaio posterior de Emile Zola, 'Le Roman expérimental' (1880), o ato gratuito permite que um romancista conduza esta parte de seu experimento com substâncias químicas e assim revelar a verdadeira natureza da psique de um determinado personagem.  Dostoiévski usou a prova da gratuidade para explorar a identidade de seus personagens não razoáveis. Goliadkin algumas vezes responde à palavras e ações de seus colegas no escritório, ou de seu médico, mas nós aprendemos muito sobre ele quando ele simplesmente examina seu nariz, freta uma carruagem, entra numa loja e não compra nada, ou absurdamente trava uma festa. Estas ações são sem causa, e assim delineiam seu interesse extraordinário por sua aparência, o que permite a ilusão, a realidade ou o jogo de um duplo que o destrói. Com outros personagens o ato gratuito pode ser raro, mas eles revelam a psique com a mesma claridade. Fedor Karamazov geralmente se comporta como um homem de negócios astuto e bem sucedido, ainda que por auto indulgência, mas quando ele perturba um encontro importante com uma série de histórias desonrosas, ele revela a mais alta criatividade cômica de sua imaginação depravada. No mesmo sentido, o assassinato de Raskolnikov é sobre-determinado, nós sabemos sua reação ao noivado de sua irmã com Luzhin, sua reação supersticiosa a um encontro casual com a lembrança de tal assassinato, seu desejo de ser da elite dos que são eleitos para o crime, etc., mas nós podemos realmente aprender sobre o Raskolnikov que emerge no final do romance, dos presentes gratuitos aos Marmeladovs, sua ajuda a um estranho na rua, seu heroísmo em salvar crianças que não conhecia de um prédio em chamas, ou seu próprio envolvimento com uma menina moribunda.

Estes atos gratuitos revelam Raskolnikov mais claramente do que o ocorrido. Isto também revela ma diferença interessante entre Dostoiévski e  Freud. Para Freud o subconsciente não tem a capacidade para analisar e moralizar. Em Crime e Castigo, o subconsciente é profundamente moral; os sonhos de Raskolnikov e as ações impulsivas lutam contra a rejeição racional de sua mente dos valores morais. Não há nada original no uso de Dostoiévski da gratuidade como meio de exploração de psicologias não usuais. Poe, Laclos, Balzac e outros sem conta usaram disso antes dele, mas ele fez dela seu instrumento maior de investigação, um dos elementos chave da psicologia, que Poe chamara de perverso e Dostoiévski de paradoxal.

Uma segunda maneira de explorar a psique fora do reino das ações e reações causadas é colocar um personagem em uma posição de impotência total, onde nada do que ele faz produz qualquer diferença. O que alguém faz em tal momento expressa sua identidade pura. Marmeladov coloca-o em tal posição e fala a Raskolnokiv, "você sabe perfeitamente bem de antemão que esta pessoa, que este cidadão excelentemente intencionado e supremamente útil, não lhe dará qualquer dinheiro. (...) E então, sabendo de antemão que ele não vai dar, você sai de qualquer maneira" (VI, 14; Pt I, Sec. 2). Uma pessoa gentil da narrativa se casa com um agiota horrível quando a outra alternativa é igualmente horrível. Os estupros de Stavogrin, ou os abusos Ivan Karamazov descrevem toda essa experiência de total desamparo que os capacita expressar ou desespero suicida, ou a fé no Filho de Deus, ou o que quer que constitua o centro da identidade que Dostoiévski criou para eles. Um personagem maior como Dimitri Karamazov revela seu padrão particular de dependência e credulidade pueril quando ele visita Kuzma Samsonov e Mme Khoklakova e percebe que não há absolutamente qualquer chance que  eles ou quem quer que seja lhe ofereçam o dinheiro para salvar o que resta de sua honra. Tais situações são cruéis e muitos leitores apresentam uma fascinação mórbida pela crueldade de Dostoiévski. Máximo Gorki disse que o sadismo era uma característica central em seus romances e seu motivo para escrevê-los era "nosso gênio maligno".

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(i) James L. Rice, Dostoevsky and the Healing Art: An Essay in Literary and Medical History (Ann Arbor, Ardis, 1985).